DA IDIOTICE: E QUE TAL RESTABELECER O DIREITO DE “PRIMA NOCTE”?
Escrito por Fernando Sousa Silva em Fevereiro 22, 2018
A vida em sociedade de cada um de nós tem dois grandes pilares: a família e o trabalho. Qualquer indivíduo que enfrente crises numa destas componentes da sua vida, tem o seu bem-estar seriamente comprometido podendo até, em situações extremas, levar à marginalização ou outras consequências de igual ou maior gravidade. Por outro lado, uma sociedade que não proteja e valorize estes dois vectores é, de certeza, uma sociedade em crise ou em decadência, com a sua sobrevivência e o bem-estar dos seus diversos elementos seriamente ameaçados.
Ao longo da história da Humanidade, um destes pilares – o trabalho – tem estado sob constante pressão no sentido da sua desvalorização. Os períodos históricos em que tais pressões conseguiram impor-se são, geralmente, momentos menos bonitos da Humanidade e desembocaram em profundas crises sociais. Pensemos, para ilustrar, na escravatura ou na Primeira Revolução Industrial. É, aliás, a partir desta Revolução (finais do séc. XVIII, princípios do séc. XIX) que começa a haver quem defenda o princípio muito liberal de que o trabalho não é mais do que uma mercadoria passível de troca e sujeita às mesmas leis da oferta e da procura de qualquer outra mercadoria. Isto só é verdade em parte – aplica-se mas com algumas limitações de ordem ética e social. Porém, a ideia extremista do trabalho como simples mercadoria serviu de tal forma a certos interesses e vingou tão fortemente que há quem, ainda hoje, pense desta forma.
As profundas crises sociais dos últimos 200 anos têm, em boa parte, as suas raízes neste princípio ideológico. Não me vou alongar (porque não é o espaço para isso) sobre o quão errado está este pressuposto mas sempre adianto que a própria existência de um ramo especializado do Direito – o Direito do Trabalho – prova esse mesmo erro. Se a relação laboral se consubstancia num contrato, qualquer princípio geral de Direito aplicável aos contratos deveria bastar para regular essa mesma relação. Porém, a realidade veio provar que o contrato de trabalho é um contrato feito em circunstâncias especiais, entre as quais avulta a posição de fragilidade negocial do trabalhador face à entidade patronal, posição essa que o Direito do Trabalho tenta tornar mais equilibrada e justa.
Quando se olha para o trabalho como uma mera mercadoria estamos, inevitavelmente, também a olhar para a pessoa que faz esse trabalho como uma mera mercadoria. Ética e socialmente isto é profundamente reprovável e, a vingar, é uma ideia que traz profundas e gravíssimas consequências, sociais, económicas e políticas. O Homem nunca pode ser um meio para atingir seja que fim for porque o Homem só pode ser um fim em si mesmo.
Contudo – e como já disse acima – no mundo do trabalho não deixa de ser aplicável, com algumas especificidades e limites, a lei da oferta e da procura. Se a taxa de desemprego for alta (muita oferta de trabalhadores, típico de alturas de crise económica), os salários (o “preço” do trabalho) tendem a descer; se, ao invés, a taxa de desemprego for baixa (normal em períodos de crescimento económico a que, geralmente, se associam períodos de forte procura de trabalhadores por parte das empresas), os salários tendem a subir. Temos ainda, por outro lado, que um trabalhador que dê maiores garantias de bons desempenhos profissionais tende a ser uma “mercadoria” com um valor mais alto. Os jogadores de futebol são o exemplo perfeito disto. Como em qualquer outro negócio, a qualidade paga-se!
Não estou a ser nada inovador nisto que escrevo, nem o pretendo ser. São meras constatações que, com um pouco de atenção, qualquer um pode comprovar.
Dito isto, não percebo como é que se dá tempo de antena a uma personagem – empresário de pouco futuro e que já foi líder de organizações patronais – para dizer tamanha barbaridade e idiotice como “as pessoas não querem trabalhar”. Isto só mostra débeis competências empresariais. Alguém lhe diga que os tempos do esclavagismo e do servilismo já passaram; que o tempo de Portugal ser uma economia cuja competitividade se baseava nos baixos salários tem que fazer parte do passado se queremos entrar na modernidade; que para se ser um empresário ou gestor de sucesso tem que se fazer hoje apelo a outras competências que vão muito para além da mera capacidade para ditar ordens que nunca podem ser questionadas, ´por mais idiotas que sejam; alguém lhe diga que as pessoas querem mesmo trabalhar mas que o trabalho, para ser verdadeiramente produtivo, tem que ser muito mais do que uma mera forma de evitar a pobreza (em Portugal, com o salário mínimo nacional, tal não acontece) e tem que ser uma forma de realização pessoal.
Eu sei que dizer coisas destas a quem ainda gosta de pavonear títulos nobiliárquicos feudais e anacrónicos, bem como de alardear toda uma postura de “casta superior”, é o mesmo que falar para uma parede.
Felizmente, vivemos num país onde dizer alarvidades tamanhas como as proferidas por tal senhor (quanto tempo demorará até reivindicar o restabelecimento do direito de prima nocte?), já chocam e causam polémica. Bons sinais dos tempos!
Até para a semana. Desfrutem sobre Odivelas!
Fernando Sousa Silva
Sociólogo