PORTUGUESES SUAVES
Escrito por Paulo António Monteiro em Abril 21, 2020
PORTUGUESES SUAVES
por Luis Filipe Silva
O José acha que esta coisa do Covid-19 é uma grande chatice. Não pode ir à discoteca, apanhar umas ondas na Caparica e sente-se sufocado sem curtir com os amigos. Não percebe estas restrições, nunca votou, acha que os políticos são todos iguais, não ouve rádio, não lê jornais, não vê televisão, a não ser aquela coisa do” Big Brother”, à qual até acha uma certa graça, sobretudo quando eles e elas se desentendem. O que lhe interessa é que o patrão lhe telefone para ir trabalhar no dia seguinte. Fatura mais uns cobres, sem recibo, que isto de pagar impostos é para quem gosta de ser “chulado”. O diabo é que vai para quinze dias que o homem não lhe telefona. Bom, sempre vai curtindo umas músicas no youtube.
A Maria anda nas limpezas, a dias, sempre andou. Recebe à hora, sempre que há trabalho e quando não há a culpa é do Governo. Não gosta de política, não percebe nada disso. Gosta é que o Benfica ganhe, por que se assim não for, já sabe que noite alta, quando o marido chegar a casa, mais bebido do que comido pelo desagrado, lhe avia os tabefes a que já se habitou. E, depois, são as vizinhas, putas, sempre a meterem-se na vida dela, as conversas na mercearia, na rua, que se calam à sua chegada. Ainda por cima, agora, com o homem sempre em casa. Havia de acabar este Covid a ver se ele vai trabalhar.
O João também anda aborrecido. Tinha previsto ir à terra com a patroa e os filhos na Páscoa e foi barrado em Aveiras pela GNR. “Não se faz! Então estes gajos, em vez de andarem atrás dos ladrões e da bandidagem, estão aqui para não me deixarem ir à terra?”. Grande chatice este Covid, bem podia ter ficado lá pela China, sim, porque os chineses é que são os culpados disto!
A Ana é médica. Vai para largos dias, que trabalha mais de doze horas por dia e assiste impotente a dramas anunciados e que não consegue evitar. Tem medo de ir a casa, pode estar infetada, mais vai. O amor e a saudade fazem-nos correr riscos, e tem saudade dos beijos e dos abraços do marido e dos filhos. Há dias, tinha a sua espera , na caixa do correio, uma mensagem anónima: ” Era bom que fosses morar para outro lado”. Malvado Covid, que afeta as mentes das gentes!
O Pedro continua a trabalhar na fábrica. A sua vida é o trabalho e a política é coisa para quem sabe. Não usa proteção, que essas mariquices de luvas, máscaras e afins não dão jeito à produtividade e o patrão precisa de faturar para nos pagar o ordenado. A gente vai-se ajeitando. Já foi sindicalizado, mas deixou de o ser. Sindicatos, nem pensar, o patrão é que me paga o ordenado. O Covid não lhe importa nada, é coisa de políticos. Se fossem trabalhar….
A Sara também anda revoltada. Comemorar o 25 de Abril? Nem pensar! Então, eu que antes, andei em bons colégios pagos pelo meu Pai, nunca me faltou nada, já era rica e casei ainda mais rica, nunca trabalhei, embora tenha um grupo de amigas que, a tempos marcam encontros e desenvolvem umas ações de caridade, ia agora comemorar o 25 de Abril? O meu marido soube-se adaptar aos novos tempos e eu estou de bem com isso. Desde que não tenha de trabalhar e possa ir ao chá com as amigas, importa-me lá o que ele faz fora de casa. No tempo do Salazar é que era bom, havia empregadas, não reivindicavam, vivíamos em paz! E agora, este Covid, que fecha cabeleireiros, lojas de roupa, não nos deixa viajar. Que chatice!
O António é um caso particular. Sem futebol, sem touradas e sem as partidas de sueca no Jardim da Parada, a vida não tem sentido. Não sabe o que fazer. Ler não faz sentido, é coisa para intelectuais, já leu tudo o que tinha a ler na escola, à base de cada reguada por palavra mal soletrada. Ainda, por cima , tem de ficar em casa a aturar a mulher: “Podias arranjar essa prateleira. Podias lavar os azulejos da casa de banho. Podias arranjar essa porta que anda a bater com o vento. O raio que a parta!” A culpa é dos políticos , que me obrigam a isto. Por isso é que eu não voto. São todos iguais. Deixem-se lá dessas tretas do Covid e façam lá uma touradas e retomem o campeonato que o Benfica ainda pode ser campeão.
A Rita é a mais angustiada desta análise. A vida nunca lhe sorriu. Raramente foi à escola, sempre descalça, como sempre descalça, acabou a tratar dos animais, na quinta dos pais. Deles sempre se recorda a trabalharem e dos silêncios à refeição, na qual a sua mãe, sempre de pé, não participava. Casou, porque tinha de ser, no primeiro dia em que calçou sapatos, mas magia durou apenas um dia. Teve quatro filhos. O mais velho ficou em Angola, abatido, dizia-se na altura, pelos terroristas e o mais novo foi-lhe devolvido da Guiné numa “cadeira de rodas”. Das filhas , sabe que uma fugiu à sua sina e foi para Lisboa servir. Acabou prostituta , depois de abusada por vários patrões. A outra, também foi servir, mas teve mais sorte, casou com um senhor de posição, diziam que era da Pide. Deve-se ter adaptado, porque agora, quando vê a filha é na televisão, a sua única companhia, em ações de caridade da empresa do marido, cujos trabalhadores em 90% auferem o ordenado mínimo e trabalham 12 horas por dia, parece-lhe bem. Sabe que tem netos, cinco, segundo lhe dizem, mas não conhece nenhum. Há muito que não há carros que subam aquele caminho esburacado e poeirento que leva a sua casa. Maldito Covid, nem tu me trazes os netos a casa, tantas vezes tenho falado de vós, sem vos conhecer, às senhoras do Centro Social, que aqui passam para saber de mim e ainda fazem soltar o pó do caminho. Dizem-lhe para se proteger, não sair de casa. Há muito que não o faz….
Luis Filipe Silva
Nota: Neste texto, todos os nomes são fictícios, mas o País é o que temos e aceitamos que assim seja.