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HISTÓRIAS NUMA VIDA «A promessa do Belarmino»

Escrito por em Maio 15, 2020

 

 

HISTÓRIAS NUMA VIDA 

Por Eugénio Rietsch Monteiro

 

A PROMESSA DO BELARMINO *

O Belarmino era um jovem de vinte e três anos, boa criatura, mais ou menos bem apessoado, cheio de boas intenções mas nada mais, além disso. Não tinha profissão definida, era preguiçoso e ia fazendo alguns trabalhitos de vez em quando. A mãe, única família que tinha conhecido, deixou-lhe o casebre em que vivia. Os pequenos trabalhos que ia fazendo, quer na construção quer nos campos, conforme as estações do ano e a sua disposição, além de algumas ajudas caridosas, iam-lhe permitindo sobreviver parcamente. Era bondoso por natureza e estava sempre pronto para ajudar fosse quem fosse.

A mãe sempre lhe tinha dito:

– Belarmino, meu filho, vê se fazes alguma coisa que te permita viver sem teres que pedir esmolas.

– Ó minha mãe, o que faço chega-me para viver, não sou ambicioso.

E de facto não era.

Ia vivendo…

Quando a mãe morreu as suas dificuldades aumentaram; a reforma dela já não existia e como ele não tinha profissão ou trabalho fixo, também não tinha direito ao subsídio de desemprego e, como tinha herdado da mãe aquele casebre minúsculo, era proprietário e também não tinha direito ao rendimento social.

Que trabalhe que tem bom corpo para isso, diziam alguns habitantes da aldeia!

Na verdade, ele trabalhava na lavoura ou em qualquer outra coisa para que o chamassem mas, apenas quando se lhe acabava o último cêntimo do último trabalho. Havia apenas uma excepção: se lhe pedissem um trabalho urgente, fosse qual fosse, nunca dizia que não.

O Belarmino, no entanto, mantinha um ar sereno e era atencioso com todas as pessoas. Era conhecido lá na terra por isso mesmo e pela samarra mais velha que um trapo que, poucos anos atrás, uma senhora lhe oferecera como gratificação pela ajuda que lhe deu, espontaneamente, para mudar um pneu no seu carro.

Estava frio, era inverno e o rapaz a uma pergunta da senhora quanto ao que deveria pagar-lhe pelo serviço prestado limitou-se a encolher os ombros dizendo:

Não é nada, minha senhora! Até serviu para me aquecer.

Só nessa altura a senhora reparou que o rapaz estava enregelado. Então, foi à mala do carro, tirou uma samarra que lá tinha e ofereceu-lha. O Belarmino ficou tão contente que nunca mais deixou de a utilizar, o que a fez envelhecer rapidamente, e passou a ser conhecido por “o rapaz da samarra”.

Um dia, o Belarmino encontrou na rua o Padre José e disse-lhe: Sr. Abade, quando eu for rico mando-lhe fazer uma capela nova com uma nossa Senhora com a cara da minha mãe. O bom padre sorriu e apenas disse:

– Muito obrigado, Belarmino, o Senhor te abençoe!

E seguiu o seu caminho.

Quando não fazia nada, o que era frequente, entretinha-se a vaguear pelos montes, observando os bichos, comendo uma fruta aqui outra ali, no tempo dela, ou acartando para o casebre folhas e galhos secos que lhe permitissem aquecer-se à noite, sobretudo em tempos de invernia. No entanto, quando lhe pediam alguma coisa nunca ele sabia dizer não.

 

Andava feliz com a samarra que passou a usar quer estivesse frio ou não, chuva ou sol. Era o seu tesouro que não largava nunca.

Lá na aldeia consideravam-no meio simples mas, como era naturalmente prestável, sempre o ajudavam como podiam.

E assim ia vivendo.

Um dia, o Sr. João da Venda, pediu-lhe para ir à Vila buscar uma encomenda que estava a fazer-lhe falta. Deu-lhe cinco euros para a camioneta e para comer uma sande.

Partiu alegre como um cuco na Primavera.

Para aproveitar aquela oferta, para ele tão generosa, não utilizou a camioneta da carreira que naquela sexta-feira saía tarde e logo pela manhã meteu-se a caminho, serra adentro, apenas se distraindo com os pássaros, sobretudo os melros cujo canto tão bem imitava, ou com alguma raposa que conseguisse avistar, ao longe.

Chegado à vila, como sentisse vontade de comer alguma coisa e a sêmea que trazia nos bolsos da samarra já se tinha ido, decidiu aproveitar os cinco euros e foi à padaria aonde comprou uma carcassa de pão branco de que gostava muito e a que poucas vezes tinha acesso. Comprou uma e ainda lhe sobrou dinheiro.

Após ter guardado a encomenda do Sr. João, e como também estava calor, o Belarmino dirigiu-se para a fonte junto da qual se sentou para descansar e almoçar, se é que se pode chamar verdadeiramente almoço a um casqueiro de trigo branco e uns goles de água da fonte, apesar de cristalina.

No regresso, ao fim da tarde, foi à venda entregar a encomenda e o Sr. João convidou-o para cear consigo.

Como ainda estava calor o Belarmino tirou a samarra que pousou no chão, ao seu lado.

Conta lá, rapaz, viste muitas raposas? Parece que este ano elas andam por aí em grande quantidade. Temos de ter cuidado com as galinhas.

Vi duas, logo pela manhã, que elas não andam por aí à toa. O que vi foi um bando de perdigotos com a mãe, eram aí uns dez. Hei-de lá voltar um dia destes pela manhã a ver se deito a mão a algum.

Estavam nesta conversa, entretidos, quando de repente se ouviram tocar os sinos a rebate.

Era fogo na chaminé da casa do Zé Ferreiro. Logo o Belarmino se levantou e correu velozmente até ao cabo do povo, para ajudar. Tão grande era o seu desejo de ser útil, como habitualmente, que nem se lembrou da samarra.

Quando o fogo foi dado por extinto é que o Belarmino se deu conta de que não tinha consigo a samarra.

Ficou com ar aflito.

Correu à venda do Sr. João para a apanhar mas quando lá chegou não a viu.

– O Sr. João, não viu por aí a minha samarra?

– Não vi nada, aonde a puseste?

– Deixei-a aqui no chão. Ao lado do banco.

– Procura, rapaz, que ela não tem asas e também ninguém quereria aquilo para nada.

Debalde procurou por todo o lado o seu velho tesouro. Nem o viu nem ninguém tinha ideia de o ter visto.

Não podia ser.

O rapaz andava desaustinado, a samarra tinha de aparecer.

– Mas que raio lhe passa pela cabeça, dizia o Zé Ferreiro, com tanta preocupação com a samarra que já nem um mendigo quer?

– Ele tem-lhe amor, lá isso é verdade, mas até este ponto? Comentava por sua vez a Genoveva do Fundo. Vamos ver se lhe arranjamos outra ou então a rapaz ainda se mata com tanta tristeza.

Pela cabeça de ninguém passava que o Belarmino, naquela sexta-feira, quando foi à Vila buscar a encomenda do Sr. João, ouviu falar no Euromilhoes e como o Sr. João lhe tinha dado 5 euros, resolveu jogar uma coluna, gastava dois euros mas como tinha gasto um no casqueiro ainda lhe sobravam dois para o que fosse preciso.

 

Quando ganhar mando fazer uma Nossa Senhora com a cara da minha mãe e ofereço-a à Igreja. Assim poderei vê-la e falar-lhe sempre que quiser!

Era dia de feira e havia muita gente pelas ruas mas o Belarmino, absorto nas suas ideias, nem se dava conta disso. De regresso a casa com a encomenda ia alegre como um gaio, assobiando e sorrindo. A lembrança da promessa feita ao Padre José e a estátua da Senhora com a cara da mãe não lhe saíam da cabeça e, para ele, era uma certeza.

Como se lembrou daquilo? Viu em algum calendário que era dia 23 de Setembro, logo vinte e três dos nove. Subitamente veio-lhe à lembrança: vinte e três anos tenho eu e nasci num dia nove; vinte e três com nove são trinta e dois, como nasci em Março são mais três e a minha mãe foi-se em vinte sete de Novembro com cinquenta e três anos.

Gizou, assim, a seguinte chave 3 9 23 27 32 / 3 5. Registou um boletim com esta combinação, pagou abençoando o Sr. João, e meteu o papel num bolso, quase desfeito, da samarra e abalou.

Só que agora, por causa do incêndio, a samarra tinha desaparecido e ninguém dava com ela.

Uns dias depois, continuava vagueando à procura da samarra, ouviu dizer que o prémio grande tinha saído no Café da Vila mas ninguém sabia a quem. Entretanto, tratou de saber em que números caiu a sorte.

Antes o não tivesse feito.

Empalideceu ao vê-los. A sua chave estava lá certinha, mas o recibo tinha desaparecido com a velha samarra.

Nada disse e dirigiu-se lenta e tristemente para casa.

Alguns dias depois a Genoveva do Fundo foi à venda do Sr. João perguntar se o não tinha visto.

– É curioso, costumava vir aqui a cada passo e há já alguns dias que o não vejo. Mas o que quer do rapaz?

-Olhe para isto?

E mostrou uns frangalhos de pano, restos da samarra que os cães tinham levado no dia do incêndio e com a brincadeira deram cabo dela, totalmente.

-Pois vou agora mesmo a casa dele levar-lhe estes restos. Gostava tanto desta coisa que, certamente mesmo sem já a poder usar, ficará contente.

E fez-se ao caminho.

Chegando à casa não viu ninguém nem ouviu o mínimo barulho.

Às suas chamadas não obteve resposta.

– Onde raio se terá metido este inocente?

Como a porta habitualmente não estava fechada, entrou para lá deixar os restos da samarra.

Quando entrou só viu a lareira que ainda estava com lume.

Quando os olhos se habituaram à escassa luz procurou e, de repente, começou histericamente a gritar.

Calou-se uns segundos sem saber o que fazer e, num acesso de fúria, atirou com os restos da samarra para o fogo, gritando:

– Maldita samarra, prenda do diabo. Vai para o inferno ter com o teu amo!

O corpo do Belarmino, ainda morno, encontrava-se a balançar suspenso duma trave com uma corda à volta do pescoço.

Pregado à sua roupa um papel, dizendo:

– Sr. Padre José, o diabo roubou-me a capela que eu lhe queria oferecer. Agora vou ter com a minha Mãe.

E nunca ninguém foi capaz de entender esta frase…

Pedrouços, 23 de Março de 2013

* Publicado no Livro Histórias numa Vida