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OPINIÃO/CRUZEIRO: “E O SABONETE ESCORREGA, DESLIZA, FOGE-NOS DAS MÃOS…

Escrito por em Janeiro 19, 2018

E O SABONETE ESCORREGA, DESLIZA, FOGE-NOS DAS MÃOS…

Não há que ficar surpreendido quando qualquer objecto cumpre a missão para que foi criado, sendo certo que os objectivos a alcançar com a sua criação variam consoante as necessidades, ou interesses, do seu criador.

Veja-se, por exemplo e para referir um tema que por aí anda no ar, de que todos falam sem que a maioria perceba  sequer aquilo que diz,  a discussão  acalorada  que  se vem  travando  acerca  da  legalização da cannabis. Eu, que do assunto (ainda) nada percebo e por isso não tomo (ainda) posição, limito-me a constatar, um pouco canhestramente, admito-o, que para uns aquela planta nasceu para ajudar a curar doenças e, para outros, aquilo só serve para o pessoal se drogar, em especial, segundo as mentes menos favorecidas, na Festa do Avante, pois onde mais poderia ser?

Não vou envolver-me, por isso e por enquanto, numa discussão para a qual não estou preparado.

O que hoje pretendo é voltar ao sabonete para cuja perigosidade adverti, neste mesmo espaço há mais de três meses.

Aquando da última eleição para a Presidência da República, chamei a atenção para o “candidato sabonete” que, como era previsível, acabou por vencer confortavelmente.

Instalado no cargo, aí o temos, sempre escorregadio, a pôr-nos a todos (e a todas), até aos que o elegeram, em risco eminente de ficarmos naquelas posições incómodas que então referi.

É que o homem acaba por escorregar ainda mais do que era previsível.

Não há desgraça que aconteça no país para onde não deslize de imediato, com todos os canais televisivos à ilharga, para que o seu nobre gesto seja levado a todos os recantos deste abençoado recanto europeu, para sua eterna glória e mais uns tantos votos nas próximas eleições.

E então lá o vemos todos os dias, em directo e em diferido, com repetições às 10, 11, 12, 13, 14 e demais horas até ao raiar da aurora do dia seguinte (onde a saga continua até que nova desgraça aconteça e o texto da peça tenha que ser reformulado para nova investida, sempre com a mesma realização e o mesmo actor principal), a beijar afectuosamente os familiares das vítimas mortais que, inadvertidamente, foram apanhadas na rede da fraudulenta política de direita que ele próprio nunca combateu, antes apoiou em várias etapas da nossa “vida democrática”.

Por caridade (sim, eu por vezes também a uso em casos desesperados) não me vou referir às suas embevecidas cartas ao criminoso ditador seu homólogo nos tempos de antigamente. Não, não vou cometer essa crueldade. O que passou passou, não deve ser esquecido mas também não adianta mexer-lhe demasiado, até por uma questão de preservação do ambiente que se quer o mais saudável possível.

Não nos desviemos, portanto, do que é essencial neste momento.

E o essencial é que o nosso Presidente, sempre que acontece uma desgraça cuja responsabilidade possa ser assacada, apenas ou de raspão, ao poder político (leia-se governo em funções) lá aparece, escorregadiamente afectuoso, a exigir (e bem) o apuramento de responsabilidades.

Claro que, para quem se encontre minimamente informado, estas são fáceis de apurar, bastando para isso elencar as políticas prosseguidas por quase todos os governos que têm exercido o poder. Governos esses que têm a marca indelével dos partidos que os integraram: PS, PSD e CDS/PP.

Mas o certo é que as escorregadias exigências presidenciais visam mais (ou apenas?) as deficiências agora manifestadas no combate às catástrofes, do que as medidas de prevenção que as evitassem, criminosamente desdenhadas de há muitos anos para cá.

E assim, fica tudo normalizado. PSD e CDS ganham algum alento com este apoio encapotado, os familiares das vítimas e muita outra gente, mais sensível aos afectos do que à razão das coisas, ficam muito enternecidos, agradecidos e ganhos para o próximo voto. Tudo na santa paz do Senhor.

Se quisermos falar apenas no que se espera que o Presidente faça no exercício das competências que constitucionalmente detém, as coisas, continuando a escorregar para níveis não recomendáveis, já não são assim tão “afectuosas” como isso.

Cito como exemplo a sua adesão à campanha mentirosa e caluniadora, roçando o mais rasca populismo e a mais despudorada demagogia, quando vetou as alterações à Lei de Financiamento dos Partidos, sem qualquer razão válida (a não ser, que se vislumbre, o de embarcar na perigosíssima tese de que os partidos são assim como que uma espécie de associações de malfeitores, tese tão acarinhada pela reles comunicação social manobrada pelos seus proprietários e donos absolutos).

Por fim e voltando ao tema dos afectos para com as vítimas da política que ele próprio defende, apenas uma pergunta aqui deixo:

– O sr. Presidente já ouviu falar, por acaso, do que se passa na ex-fábrica da Triumph, onde mais de 400 trabalhadores não recebem o seu salário desde Novembro de 2017, não lhes foi pago o subsídio de Natal e a única coisa que receberam foi uma carta da empresa “convidando-os a ficar em casa até a produção se regularizar”?

Alertados para situações similares já acontecidas noutros locais, os trabalhadores, na sua maioria, não embarcaram no engodo e continuaram a apresentar-se todos dias na fábrica, impedindo que lhes fosse roubado o fruto do seu trabalho já concretizado e as sofisticadas e valiosas máquinas ali existentes.

Desde aí, centenas de trabalhadores, na sua grande maioria mulheres, não desarmam na defesa da sua fábrica, formando turnos para garantir que esta não seja pilhada pelos habituais predadores do trabalho alheio, que se servem de todas as artimanhas para garantir grandes lucros sempre à custa de quem trabalha.

São centenas de trabalhadores, senhor Presidente. Muitos deles com dezenas de anos de dedicação à “casa”. Cada um com a sua família para alimentar, cada um com as suas obrigações para cumprir e que se vê, de um momento para o outro, lançado para uma situação perto do desespero.

Não sabe onde a coisa se passa? Eu explico-lhe, senhor Presidente. A cena que lhe relatei está em exibição em Sacavém, concelho de Loures.

Vamos lá, senhor Presidente. Escorregue até lá, vá manifestar o seu afecto àqueles trabalhadores vítimas da sociedade onde o senhor poderia desempenhar justo e importante papel, se para aí estivesse virado, e não ligue aos seus apoiantes mais acérrimos, entre os quais estarão certamente os predadores de que acima falei.

Já sabe que a televisão não cobrirá condignamente tal acção, porque esta não se enquadra nos seus “critérios jornalísticos”. Também não será lá que angariará muitos votos, porque a consciência de classe ainda mora por ali.

Mas, mesmo assim, arrisque. Ficar-lhe-ia muito bem, acredite.

Um bom fim-de-semana para todos.

Adventino Amaro

19.01.2018

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