Cruzeiro

De Odivelas para o Mundo

Faixa Atual

Título

Artista

Atual

Atual


UM ACORDE DE JAZZ

Escrito por em Abril 30, 2022

A propósito do Dia Internacional do Jazz

Por Fernando Ziegler Raimundo

“Do mesmo modo, quero poder apropriar-me de qualquer tipo de música de que goste, qualquer tradição que valorize e qualquer tradição gastronómica que aprecie – se for boa, adopto-a. Quero poder apropriar-me e reclamar para mim o exemplo das coisas boas que outras pessoas fizeram, mesmo que não tenham sido perfeitas.”

Barak Obama (44º presidente dos Estados Unidos de 2009 a 2017), in “Renegados: Nascidos nos EUA” (2021).

 

 

No dia 30 de Abril comemora-se mais um Dia Internacional do Jazz, que neste ano de 2022 vai na sua 10ª edição desde que o pianista Herbie Hancock o anunciou, enquanto embaixador da boa vontade da UNESCO.

Herbie Hancock 12 04 1940, Chicago, EUA

Associado a todas as iniciativas que promovam a diversidade cultural entre os povos e a luta pela liberdade, este género musical significa para mim – que o aprecio há 50 anos – um permanente apelo à criatividade e um alerta para que nos desvinculemos de certos preconceitos e tabus sempre que a eles sejamos tentados quando impelidos para o conformismo e a inércia.

Apreciando muitas das suas interpretações e estilos, reconheço que existe Jazz para todos os gostos, sensibilidades e exigências, como em qualquer outro género musical. E também percebo e aceito que haja quem não o aprecie e até deteste, porque o ‘gostar’ também se aprende, dependendo das circunstâncias e do modo como se processa a aprendizagem, desde o envolvimento emocional à forma despreocupada de ouvir e sentir, esteja-se só ou acompanhado.

É por isso que não enquadro esta forma de expressão artística numa perspectiva exclusivamente musical, mas também numa atitude perante a vida, no sentido da valorização da autenticidade e da espontaneidade.

Efetivamente, uma das características incontornáveis no Jazz é a improvisação que, não sendo exclusiva deste género musical, lhe empresta uma natureza única ao nível do desenvolvimento dos temas abordados, os quais serão sempre reinventados e interpretados, também por se tratar de música de tradição oral e não escrita.

Outra das características desta música é a facilidade com que se mistura e adapta às diferentes culturas, delas se apropriando e com elas se miscigenando, adquirindo assim uma dimensão universalista. São disso exemplo as fusões dos ritmos tradicionais latino-americanos de raiz ibérica (desenvolvidos nas ex-colónias), existindo também reinterpretações na Índia e, enfim, um pouco por todo o mundo.

As suas raízes intrinsecamente africanas agruparam-se num tronco comum que atravessou o Atlântico em trágicas viagens de sofrimento que haveria de encontrar algum consolo nos cânticos dos escravos enquanto trabalhavam e, mais tarde, nos locais de culto religioso, donde nasceria aquele sentimento intraduzível de nostalgia, mas também de esperança, designado por blues.

Rural e acústico, ou urbano e eletrificado, o blues é, na opinião de Miles Davis (trompetista norte americano, 1926-1991), a quinta-essência do Jazz, o recôndito da sua alma, o calor latente que estimula o processo dinâmico e criativo inerente a este género musical.

Dança Triste

Durante as viagens nos navios negreiros, alguns traficantes levavam grupos de escravos adultos para o convés, obrigando-os a fazer exercícios físicos. Sob a ameaça da chibata, os africanos tinham de dançar e cantar, daí resultando um “espetáculo” melancólico, que dominava o navio.

O brutal desenraizamento cultural que sofreram os escravos, tratados desde sempre como uma subespécie humana, faz-me pensar nas enormes potencialidades latentes e adormecidas que haveriam de se transformar em poderes dinâmicos, refletindo a música essa aspiração primeiramente resignada, depois catapultada em revolta – quando dela se toma consciência – e finalmente em afirmação: da potência ao acto e deste ao aperfeiçoamento definitivo – à enteléquia, como diria Aristóteles. Trata-se portanto de um processo nascido de um sofrimento traduzido em inquietação e que pela superação se manifesta de uma maneira artística.

Lembro-me, quando mais jovem, de ouvir alguém movido por aquela tendência revolucionária mais agressiva dizer, a propósito do tema “A Love Supreme”, de John Coltrane, um dos mais importantes músicos de jazz de sempre (EUA, 23/8/1926 – 17/7/1967):

“Mas que pena este músico não ter trocado o saxofone por uma metralhadora!”

E nessa altura uma outra questão se me levantou: poderão a paz e os objetivos de libertação, individual ou coletiva, ser alcançados através de atitudes e comportamentos de índole pacifista, quando na sua génese radicam sentimentos de revolta, inquietação e frustração, ou será que esse desiderato apenas poderá ser alcançado de forma violenta? A História tem-nos mostrado alguns exemplos que corroboram a primeira possibilidade, como no caso de Gandhi e da sua política de não-violência-activa que conduziu à libertação da Índia colonial, ou no de Nelson Mandela que, após ser liberto, não utilizou o seu poder para exercer vinganças de índole pessoal contra os responsáveis pelo regime do apartheid, na África do Sul. Também o reverendo Martin Luther King Jr. e o senador John Lewis, nos Estados Unidos, se distinguiram por formas pacíficas de ativismo.

Impressiona-me sempre como em poucas dezenas de anos – e com tão poucos recursos materiais – uma expressão cultural conseguiu catapultar-se dos bairros pobres suburbanos para os mais conceituados palcos internacionais.

Acompanhando a evolução tecnológica, depressa recorreu ao uso simultâneo de sintetizadores com instrumentos arcaicos, mas sem nunca renegar as origens primitivas da sua música.

De Herbie Hancock ouçamos o tema Watermelon Man (álbum Head Hunters, Columbia Records, 1973):

Em Portugal, o Jazz ganhou uma grande visibilidade a partir do 1º Festival Internacional de Jazz de Cascais, em 1971, organizado por Luís Villas-Boas (Lisboa, 1924-1999), a que muitos outros se seguiram, sempre protagonizados pelos maiores e mais reconhecidos músicos desta expressão musical.

Até lá pontuou o inexcedível trabalho de divulgação levado a cabo por José Duarte, nomeadamente no seu programa diário 5 minutos de Jazz (Rádio Renascença) que eu ouvia religiosamente todos os dias entre as 23:30 e as 23:35.

imprevisibilidade, desconforto e inquietação causados pela guerra, de nós tão próxima, celebremos este dia com uma música improvável, nascida desses mesmos pressupostos e que, superando adversidades, conseguiu um reconhecimento universal – goste-se ou não dela – numa permanente tentativa de criar pontes e superar as diferenças culturais, raciais, políticas e religiosas.

Com tolerância pelas diferenças, que nos enriquecem, e rumo à Paz.


Opnião dos Leitores

Deixe uma resposta

Seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios estão marcados com *