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SOBRE O ESPAÇO E O TEMPO

Escrito por em Outubro 20, 2020

 

OPINIÃO
SOBRE O ESPAÇO E O TEMPO
A propósito do Dia Mundial da Arquitetura
Por Fernando Ziegler Raimundo

 

 

“Não é o ângulo reto que me atrai. Nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual. A curva que encontro nas montanhas do meu País, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, nas nuvens do céu, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o Universo – o Universo curvo de Einstein”.

Poema da Curva, Óscar Niemeyer (1907-2012), arquitecto brasileiro

O Universo curvo de Einstein, diz o arquitecto-poeta.

Esta mudança radical de paradigma que encontramos entre o sistema gravitacional de Newton e o espaço-tempo de Einstein alterou por completo um determinado sistema lógico que, alavancado pela Física, depressa se catapultou para a Arte, através de um novo olhar sobre o mundo e sobre a vida.

Estávamos habituados a conceber o Espaço e o Tempo como entidades autónomas, associando e confinando o primeiro às três dimensões do volume que, de algum modo, serviriam de pano de fundo ao desenrolar dos acontecimentos que, temporalmente, se iam sucedendo de forma interminável.

A posterior descoberta de que as leis mecânicas vigentes no universo sensível e conhecido não teriam qualquer aplicabilidade no universo das partículas subatómicas, veio definitivamente revolucionar a ciência e as mentalidades, abalando e relativizando o que se considerava como adquirido e estabelecido.

Quando o princípio da probabilidade, de Robert Oppenheimer (EUA, 1904-1967) e a relação de incerteza, de Werner Heisenberg (Alemanha, 1901-1976), entraram definitivamente no glossário científico, as convicções mais ‘petrificadas’ deram lugar a conjeturas que tendencialmente sugerem, se é que não determinam, a necessidade de encarar o Universo e as leis da natureza de um ponto de vista mais abrangente, interdependente e até enigmátrico.

Também os aspetos emocionais, quase sempre ignorados e subestimados relativamente aos de índole cognitiva e racional, começaram a justificar muitos dos fenómenos estudados pelas neurociências, pela psicossociologia e pelas correntes comportamentais.

Definitivamente a noção de Espaço passou a incorporar o Tempo como uma dimensão sua, a quarta, intrinsecamente ligada ao movimento, seguindo-se-lhe as dimensões psicológicas, simbólicas e outras.

No campo das artes seria inevitável que esta revolução iniciada no princípio do século passado não imprimisse a sua marca nos movimentos culturais que se sucederam ao longo de várias décadas, com implicações nas artes visuais. E a arquitetura, enquanto a mais importante atividade central ao nível da construção da imagem, a par do cinema e de outras artes cénicas, não poderia passar incólume a esta revolução.

Quando se fala em arquitetura ou em planeamento – urbano e regional – é comum referir-se o espaço como sendo a matéria-prima que os arquitetos e urbanistas utilizam no seu processo criativo, os primeiros para conceber edifícios, os segundos quando intervêm a nível do ordenamento do território.

O espaço que dá forma e sentido às nossas cidades, vilas e aldeias, mas também às nossas paisagens – rurais, metropolitanas ou urbanas – e aos edifícios e vias de circulação que os constituem, é o nosso principal interlocutor que, tal como numa linguagem escrita, discursa pela História. Pois as cidades são organismos que nascem, vivem e respiram, acordam e dormem, mas que também morrem.

Mas também há quem defenda que “a arquitetura não é sobre o espaço, é sobre o tempo” – Vito Acconci (1940-2017), designer e arquitecto norte americano – o que acaba por redundar na impossibilidade em se separar estas duas entidades conceptuais.

Enquanto seres emocionais providos de razão, vivenciamos a música que captamos pelos ouvidos do corpo e da alma através de equipamentos físicos – a laringe, no caso da voz, e os outros instrumentos de fabrico humano – que permitem modelar e articular as relações entre o som e o silêncio.

Enquanto seres racionais providos de emoção partilhamos o espaço arquitetónico, urbano e rural, produzido por imperativos de ordem utilitária através do aprisionamento e controlo dos elementos imateriais que o enformam: a luz, a cor, a temperatura, o movimento, a expansão e a contração dos elementos construtivos que lhe conferem uma determinada tensão psicológica, entre outros.

Se em termos especulativos é ao nível do projeto que se ensaiam os modelos conceptuais que permitirão desenvolver um programa, já em termos operativos reside na técnica construtiva a materialização desse projeto: a construção não é senão um instrumento da Arquitetura.

Assiste-se a uma certa imutabilidade e perenidade de uma obra acabada, só transformada e corroída pela sistemática utilização e pelo passar dos tempos. A peça de arquitetura, uma vez concluída, mais dificilmente será alterada do que uma peça musical, sendo que esta poderá ser permanentemente reinterpretada, quer se trate de música de tradição oral, quer de tradição escrita.

E que dizer da memória, que é o tempo armazenado no espaço cerebral, a matéria-prima do pensamento?

Haverá processo criativo sem pensamento e sem emoções avivadas pela memória?

De onde vem a nostalgia que se manifesta através da memória retida no cheiro velho dos muros e paredes dos bairros antigos desabitados, com gatos e figueiras, das fábricas desativadas, dos carris cobertos de ferrugem e das casas destelhadas? Ou daquela memória agarrada às calçadas cobertas de erva, às chaminés viris que já não fumegam, às barcaças desventradas à beira rio, que nem o piar das gaivotas consegue reanimar?

O espaço onde o ambiente respira também vive de cheiros e sensações, do efeito dos preconceitos, de medos ocultos e de fantasmas do passado. Vive da memória coletiva que também alimenta a memória individual.

É geralmente nas zonas industriais das áreas metropolitanas e nos bairros envolventes desertificados onde se assiste a uma maior degradação do espaço urbano, desvitalizado pela deslocalização e encerramento de atividades que se revelaram desajustadas e prescindíveis.

As cidades também adoecem, apodrecem e desfalecem, podendo voltar a ser reanimadas através de processos de reabilitação urbana em que, por vezes, essa memória é respeitada. Esses processos passam, naturalmente, pelas condições de financiamento de quem investe e pelo mercado de arrendamento, pela criação de polos

empresariais e pela articulação destes com as universidades. Algumas pré-existências são recuperadas, servindo até de pretexto para uma alavancagem de funcionalidades perdidas, subsistindo por vezes símbolos e marcas que adquirem um novo valor acrescentado, uma vez reabilitados enquanto moda, através de cenografias estudadas com propósitos cheios de intencionalidade, ainda que por vezes de forma subliminar.

Na era da comunicação e do marketing a espontaneidade está, de algum modo, cerceada pela planificação estruturada que limita a criação de espaços improvisados e que muitas vezes não atendem às raízes culturais de quem os habita. São fenómenos algo recentes que decorrem da agilização de movimentos migratórios espontâneos e da necessidade em conter e controlar atitudes culturais consideradas adversas e que interferem nas ordens estabelecidas.

Na concepção do espaço urbano dever-se-á atender aos aspectos sociológicos de quem os irá habitar, mas a exigência transdisciplinar associada a esse processo é complexa e morosa, requerendo a adaptação, renovação e redimensionamento das infraestruturas e equipamentos existentes.

Quer se trate de construções isoladas ou de aglomerados urbanos, é na dimensão humana de quem os vier a habitar que encontramos as características morfológicas e o dinamismo da vida que os anima. A arquitetura traduz sempre as necessidades de uma época, os imperativos que norteiam as motivações daqueles que a encomendam e utilizam e as circunstâncias materiais e culturais da sociedade. É em função dos sistemas potenciadores dos diversos contextos, numa determinada época, que se irão desenvolver os mecanismos indutores de uma determinada imagem que modelará o espaço urbano.

Trata-se de um processo dinâmico cujo sucesso exigiria a participação empenhada de todos os cidadãos que sendo convocados a exprimir as suas opiniões restituiriam à política a sua original e nobre função: a organização da polis.

Fernando Ziegler Raimundo