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SOBRE A “VIVÊNCIA EM AUSÊNCIA DE DESEJO”

Escrito por em Maio 12, 2020

 

OPINIÃO

Sobre a “vivência em ausência de desejo”, vista como um ideal das filosofias budista e espiritualista

Por João Malveiro

 

 

Primeira parte: o problema do tempo (psicológico) nas filosofias budista e espiritualista

É vulgar, nos círculos espiritualistas e budistas, entender-se o desejo como algo a “abater” se queremos prosseguir, com firmeza e determinação, na senda evolutiva (espiritual)!… Recordo-me, nos meus tempos de menino aprendiz e totalmente embevecido pela revelação teosófica e budista, de tomar contacto com muita literatura que apontava nesse sentido – foi essa a minha primeira grande perplexidade suscitada pela filosofia de base oriental.

Numa primeira análise, parecia-me que essa postura filosófica correspondia a uma variante daquilo que, na cultura judaico cristã, era entendido como pecado: a “natural” predisposição dos humanos para a manifestação do “mal” – onde os prazeres da carne e a sensualidade ocupam um lugar de destaque na definição desse “mal”!… O tema merecia, portanto, um adequado aprofundamento, pois estava em causa a possibilidade de um precoce desabar, dentro de mim, da filosofia que teve, no final da minha adolescência, um efeito de encantamento “salvífico”.

Interessa, assim, analisar ao que é que nos estamos a referir quando a palavra “desejo” é utilizada, nos livros de divulgação da filosofia oriental, como tradução de uma determinada realidade psicológica que, numa primeira leitura interpretativa daquela filosofia, importaria refrear.

Li algures (num pequeno livro de divulgação sobre meditação) que a expressão em sânscrito que corresponde ao grande ideal budista (“Apranihita”), sendo vulgarmente traduzida como “vivência em ausência de desejo”, também poderia ser traduzida por “vivência em ausência de projecto”. Ora, para o autor do mencionado livro, seria esta última a tradução mais fiel do verdadeiro significado da expressão sânscrita “Apranihita”.

Esta interpretação, aliada às considerações de Krishnamurti (cujo pensamento sofreu, do meu pinto de vista, uma forte influência da filosofia budista) sobre este tema, que apontam no mesmo sentido, fez-me rever o significado do conceito “desejo” e indagar sobre qual o aspecto que este conceito comporta que a filosofia budista destaca como sendo o responsável pelo sofrimento (insatisfação geral) humano.

A conclusão a que se poderá chegar a partir destas observações é que, para aquela filosofia, o aspecto problemático inerente ao desejo (que inclui os naturais impulsos biopsicológicos que nos constituem ou as nossas necessidades afectivas) não são os prazeres implicados na sua satisfação, mas sim o elemento tempo (tempo psicológico/dinâmica projectiva do pensamento) que normalmente acompanha (mas não necessariamente) a concretização desse mesmo desejo.

O que é que isto significa? – Significa que, neste entendimento, o elemento pernicioso da actividade humana, identificado por aquela filosofia, é o pensamento que projecta, que planifica, que idealiza uma finalidade a concretizar (ou um valor a desenvolver) no futuro (vivência temporal) porque, ao fazê-lo, origina um conflito interior na forma de uma expectativa que se encontra associada a essa concretização (independentemente dessa concretização se vier a verificar ou não). A insatisfação geral dos humanos decorrerá, assim, da constante produção/operacionalização de inúmeros projectos (mais ou menos elaborados, mas que envolvem, sempre, a questão temporal), numa permanente busca de resultados, de respostas, de satisfações. Mas insisto: o problema não são os resultados ou as satisfações (ou a falta deles), o problema é o conflito, a tensão, o esforço, a disciplina e a necessidade de implementação de uma metodologia que o projecto (temporal) implica, assim como o poder e o exercício de controlo presentes em tudo isto – aplicados a nós próprios ou aos outros!…

Se atendermos a uma outra expressão que alegadamente também traduz o ideal budista e que se encontra muito vulgarizada no ocidente, “vivenciar o presente (o aqui e agora)”, chegaremos a uma conclusão semelhante à que foi atrás mencionada. Dessa expressão facilmente se depreende que a questão central do budismo (o que estará na base da grande ilusão/maia) será, precisamente, toda e qualquer experiência que é vivenciada no tempo, em contraste com a possibilidade de uma vivência sem tempo (eternidade?!…) – Sem projectos.

Percebe-se, assim, a razão por que o autor do referido livro de divulgação prefere traduzir o ideal budista pela expressão “vivência em ausência de projecto” e não por “vivência em ausência de desejo”: é que, da primeira, transparece e acentua-se o elemento problemático que à filosofia budista interessa referenciar (o tempo/pensamento projectivo), enquanto que da segunda, apesar desse elemento também se poder encontrar presente, pode-se induzir, erroneamente, que o problema em causa é a satisfação dos prazeres visada pelos desejos!…

Considero este pequeno detalhe interpretativo da maior relevância porque foi com base nele que atenuei as apreensões e perplexidades atrás referidas, relativamente à possibilidade da livre satisfação dos prazeres, na filosofia oriental, poder ser visto como algo condenável ou pecaminoso.