O 10 de JUNHO
Escrito por Paulo António Monteiro em Junho 9, 2020
OPINIÃO
O 10 DE JUNHO
A propósito do dia de Portugal, de Camões e das Comunidades
Por Fernando Ziegler Raimundo
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram:
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
Luís Vaz de Camões, in “Os Lusíadas”, Canto I, 3ª oitava
· O supravertido extrato da maior obra épica portuguesa, escrita em 1572 pelo mais alto representante do florescente espírito renascentista em Portugal, formado em Coimbra, portador de uma enciclopédica cultura aliada a uma experiência de vida nem sempre fácil, reflete exemplarmente as circunstâncias em que, muitas vezes, redundam as exaltadas proclamações de superioridade rácica. Esses messiânicos desígnios – que a despeito da vontade de quem os inspira, sem lhes retirar o mérito artístico ou criativo – descambam muitas vezes em acontecimentos trágicos quando sujeitos a interpretações e aproveitamentos políticos inconfessáveis.
Tem sido assim ao longo da História e mesmo após o Holocausto, a deriva estalinista ou a pouco comentada revolução cultural chinesa, quem não se lembra dos genocídios mais recentemente perpetrados na ex-Jugoslávia e um pouco por todo o lado, onde algumas minorias étnicas são alvo de descriminação e repressão generalizadas. Sendo que, nalguns casos, a sua proteção pelos poderes públicos tem igualmente gerado animosidades e fomentado a proclamação de alegadas injustiças sociais.
Pois Luís de Camões, cuja morte a 10 de Junho de 1580 perfaz agora 440 anos, ainda teve tempo de assistir à humilhante derrota portuguesa no dia 4 de Agosto de 1578, em Alcácer-Quibir, e a quem desta vez nem Neptuno nem Marte – os deuses dos mares e da guerra – obedeceram. E o peito ilustre lusitano, constituido pelas elites políticas, militares e religiosas que Camões tão bem cantou, sofreu um duro golpe nas suas ambições expansionistas e de consolidação dos valores civilizacionais que pretendia prosseguir: “… as memórias gloriosas daqueles Reis que foram dilatando a Fé , o Império, e as terras viciosas de África e de Ásia andaram devastando” (Canto I, 2ª oitava). É que, com a morte do poeta, em 1580, morreu também a dinastia de Avis, após a crise provocada pela derrota em Marrocos, dando lugar a 60 anos de ocupação espanhola, sob a dinastia Filipina, com a inerente perda da independência de Portugal.
E assistiu-se, desde então, ao nascimento do mito sebastianista.
A morte de Camões representa, assim, simbolicamente, o fim de um ciclo da História de Portugal, a que o escritor e filósofo António Telmo (1927-2010) apelidou de Ciclo dos Reis. Aos restantes períodos chamou este autor Ciclo do Clero e Ciclo do Povo, onde actualmente nos encontramos.
· Mas quem era este povo que elegeu a dinâmica noção de Firmamento – algo mutável nos céus preenchidos pelas estrelas referenciadoras – para alicerçar e motivar o Elemento implícito na sua História?
Para outros povos, como por exemplo o alemão, foi o estático conceito de Fundamento que fidelizou as suas convicções à base, ao solo e ao sólido. “Fundo, fundar e fundamento obsidiam a mentalidade desse povo mineiro, engenheiro e industrioso” (Álvaro Ribeiro (1905-1981), in A Razão Animada, ed. Imprensa Nacional, col. Pensamento Português).
E onde radicavam as características tão bem explicadas por Teixeira de Pascoaes (1877-1952) na sua admirável doutrina acerca do equilíbrio entre o elemento semita, de origem mediterrânica, e o elemento ário, de origem atlântica, na formação da mentalidade portuguesa?
Esta formulação foi igualmente equacionada e desenvolvida pelo filósofo António Quadros (1923-1993) que na sua obra Portugal – Razão e Mistério (ed. Alma dos Livros) tenta encontrar os fundamentos matriciais (Mater) onde radicam as pré-existências que viriam a ser moldadas por um qualquer princípio espiritual (Pater) que terá utilizado este território para nele vir a fundar uma Pátria.
E que nação é esta que aqui se fixou para políticamente organizar um estado que se foi construindo com objectivos claros de prossecução de um ideal e de um desígnio transmissor dos princípios e valores culturais judaico-cristãos, no plano da religião e da moral , mas também greco-romanos, no plano da ética, da justiça e da estética? E que, segundo alguns, faltará cumprir.
Alcácer-Quibir foi, de facto, uma fratura histórica, um descalabro neste putativo desígnio que, simbolicamente, terá alimentado os fantasmas de uma grandiosidade épica a retomar com a ideia do Quinto Império (O Império do Espírito Santo), que sucedendo aos precedentes impérios assírio, persa, grego e romano, tem sido defendida por uma estirpe de pensadores de elevada estatura desde o Padre António Vieira, até ao filósofo Agostinho da Silva, com inúmeros pensadores e filósofos portugueses como Bernando Coimbra, Álvaro Ribeiro, António Telmo, e tantos outros, quantas vezes subestimados e injustiçados pelas elites culturais do sistema. Também porque o gnosticismo não colhe, enquanto moda.
Com a idealização do Quinto Império, nascida da necessidade em superar um estado de alma calamitoso, têm os seus mentores defendido a criação de um espaço globalizado, em que os princípios espirituais do cristianismo seriam difundidos para promover a paz, conduzindo a uma fraternidade universal, enquanto apanágio dos valores da tolerância e da liberdade, substituindo o medo, os preconceitos e a opressão física e psicológica pelo princípio do Amor. Atitudes estimáveis, portanto, se bem que um tanto utópicas e nada fáceis de concretizar. Mas foi Fernando Pessoa quem também escreveu que “Matar o sonho é matarmo-nos. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso”. O sonho comanda a vida!
· Um país é uma entidade, um organismo vivo que, enquanto nação, cria raízes
num território que com as suas características geológicas, climáticas, topográficas e biológicas ajuda a moldar o povo que nele venha a estabelecer-se ou que, já lá existindo de forma tribal, se vê capturado por um sistema de princípios valorativos e culturais que lhe são impostos, nuns casos, ou assumidos, noutros.
Se Teixeira de Pascoaes explicou esta apropriação do espaço físico que influenciou a formação de uma mentalidade, também o geógrafo Orlando Ribeiro (1911-1997) aprofundou a relação fundamental deste sentimento de ser português com o território através, nomeadamente e de novo, das suas relações geográficas mediterrânica e atlântica, muito bem expostas na sua incontornável obra de referência Portugal: o Mediterrâneo e o Atlântico (ed. Biblioteca Nacional, Coimbra, 1945).
À semelhança de um corpo humano vivo, também um território possui o seu sistema circulatório (rios, estradas, caminhos …), respiratório (correntes de ar, ventos …), vibratório (fluxos energéticos solares, telúricos …), as suas depressões (vales …) e elevações (montanhas …), as suas glândulas de secreção interna (campos vibracionais, minas, fontes térmicas …) e externas (vulcões, fontes …) e outras manifestações naturais decorrentes do funcionamento articulado entre os reinos vegetal e animal. E enquanto existir, vivendo, este complexo conjunto de biodiversidades que constitui um território é superior e intencionalmente gerido por uma estrutura política, que também poderá ser militar e/ou religiosa, configurando e representando uma nação, um princípio de valores culturais que se organiza enquanto Estado.
E tal como as células de um organismo vivo se renovam e multiplicam, também a uma escala superior os habitantes de um país, portadores de uma nacionalidade e capturados por um sentimento de pertença a uma pátria recheada de valores patrimoniais físicos ou desmaterializados, como a língua, se reproduzem.
Espalhando-se pelo seu território ou formando comunidades no exterior, geralmente unidas pelo mesmo espírito de nação, mas também misturando-se com os habitantes dos países de destino, assim se assiste a uma convivialidade que ajuda a expandir a consciência e a fomentar as relações entre povos num clima de crescente abertura e enriquecimento cultural.
Como em tudo, possui a globalização de que os portugueses terão sido percursores, as vantagens e inconvenientes resultantes sobretudo dos choques culturais e dos interesses geo-políticos e estratégicos.
E Portugal, com cerca de 30% da sua população na diáspora, teria cerca de 40 milhões de habitantes, se contados até à 3ª geração, sendo que só nos Estados Unidos da América e Canadá contar-se-iam mais de 9 milhões.
· O território que actualmente conhecemos como ocupado pelo país Portugal, já
que a nação portuguesa também inclui a diáspora, teve a sua génese a partir do Condado Portucalense, reemergido em 1096 através do conde D. Henrique, de Borgonha, como oferta do rei Afonso VI, de Leão e Castela, pelo auxílio na reconquista de terras aos mouros.
Apesar da vontade do conde D. Henrique (vassalo do Rei de Leão), da disposição de seu filho, D. Afonso Henriques, da conveniência papal e do desejo da população que habitava o território que viria a tornar-se Portugal, a decisão de criar este país esteve conscientemente centrada num grande monge cisterciense, São Bernardo de Claraval (Dijon/ Borgonha,1090 – Claraval,1153). Política e espiritualmente influente em toda a Europa, possuía S. Bernardo uma tão sólida quão vasta cultura humanista, tendo inclusivamente sido escolhido por Dante para seu guia no Vale do Paraíso, referido em ‘A Divina Comédia’.
O que não é pouco, já que Dante (Florença,1265 – Ravena,1321) – ‘a imaginação mais fogosa que jamais existiu, mas também a mais obediente’, segundo Emile Mâle – é juntamente com S. Tomás de Aquino, na opinião daquele autor,“o grande arquitecto do século XIII”, em termos da estruturação do pensamento.
E S. Bernardo, enquanto mestre espiritual de Dante e com ligações familiares a D. Afonso Henriques (1109-1185) ainda se caracterizava por uma enorme visão geo-estratégica.
No século XII o grande perigo para a Europa cristã era o Islão, que territorialmente a cercava como uma meia-lua com uma ponta dirigida ao sul, através do norte de África, e com outra ao norte, pelos Balcãs.
Para travar esta ameaça, planificou S. Bernardo uma estratégia tripartida de ataque ao Islão, cujo coração sagrado se repartia por Meca, Medina e Jerusalém. Começou por desenvolver a Ordem dos Templários em Portugal para tamponar a frente sul, enquanto a norte da Europa criou a Ordem Teutónica para suster os perigos vindos do oriente. Se estas duas acções são de caracter defensivo, já a tentativa de tomar Jerusalém, alegada e oficialmente para libertar o Santo Sepulcro (… mas certamente que não só para isso) teve uma forte componente ofensiva e requereu uma enorme logística e preparação.
Dada a dificuldade em chegar a Meca e Medina, situadas na Península Arábica, apresentava-se Jerusalém como possuindo o melhor acesso, com um dia de marcha a partir dos navios que aportavam no Mediterrâneo. Mas vindo os Cruzados do norte da Europa, aqueles que se deslocavam por barco tinham de passar pela costa portuguesa rumo a Gibraltar. Este facto aconselhava a que se tivesse de libertar Portugal do poder muçulmano, situação que entre outras muito terá pesado no clarividente propósito da sua criação. E D. Afonso Henriques terá aproveitado a circunstância da passagem dos Cruzados por aqui para lhes pedir uma preciosa ajuda na tomada de cidades como Santarém e, definitivamente Lisboa, porque esta já por sucessivas vezes havia sido tomada aos mouros pelo Rei de Leão, e depois perdida.
Constatamos, assim, que muito do que é hoje a Europa, apesar de política e socialmente fragmentada, se deve à visão e planeamento de um monge cisterciense do século XII.
Ainda hoje reconhecemos, fisicamente, o legado da presença muçulmana nos bairros da Mouraria e de Alfama, em Lisboa, através de alguns testemunhos arquitetónicos, infelizmente poucos, porquanto o terramoto de 1755 destruiu uma boa parte desse património. E verificamos como, na cidade baixa, habitada pelas classes mais populares, existiu uma convivência entre as tradições muçulmana, cristã e judaica
· Dissemos que S. Bernardo de Claraval terá sido o responsável pelo
desenvolvimento da Ordem dos Templários, em Portugal, havendo quem considere (estrangeiros incluidos) este país como a primeira nação templária.
Recorde-se que a Ordem dos Templários, fundada por Hugo de Payens em 1128, para
proteger os peregrinos entre o porto de Acre e Jerusalém, durou cerca de 200 anos, durante os quais os Cruzados dominaram a Palestina. Embora fazendo votos de pobreza, castidade e obediência, era esta ordem monástico-militar possuidora dum invejável património, que garantia o sustento das famílias dos cavaleiros que se ausentavam. Mais tarde tornaram-se banqueiros e contruíram templos, vivendo também dos juros do dinheiro que emprestavam. Aliás, parece ter sido essa a razão da sua desgraça, porquanto tendo sido Filipe IV de França um dos enormes devedores à Ordem, detentora de feudos e inúmeras construções em Paris, mandou ordenar a sua extinção. Para reforçar esse pretexto também contribuíram algumas derrotas que os Cruzados, por eles apoiados, começavam a registar no Oriente e, finalmente, a queda de Jerusalém em 1291.
E foi no ano de 1307, a 13 de Outubro (uma 6ª feira que se tornaria tristemente célebre), que Filipe IV surpreendeu os templários em toda a França, invadindo as suas sedes, torturando e degolando centenas de cavaleiros, prendendo os seus membros e posteriormente executando na fogueira o seu último Grão-Mestre, Jacques de Molay, em 1314, com o consentimento do Papa.
Perseguidos em França e por toda a Europa, só dois países lhes deram proteção e acolhimento: a Escócia e Portugal.
Por cá reinava o rei trovador D. Dinis que, habilmente, criou a Ordem de Cristo, tendo a Coroa ficado depositária de parte dos seus bens trazidos de França, e nomeado um administrador de confiança da Ordem que viria a ser reconhecida em 1319 pelo Papa João XXII.
A sede da Ordem passou, desde então, a ser em Tomar.
Com os tesouros dos templários e os vastos conhecimentos por eles adquiridos nas viagens a partir da Palestina e de Malta, veio mais tarde (1416) o Infante D. Henrique a tornar-se o Grão Mestre da Ordem de Cristo, possuindo os meios necessários ao desenvolvimento do projeto de expansão marítima português, a partir de Lagos, que se tornou num famoso centro de investigações náuticas.
É o primeiro grande impulso organizado para a epopeia dos descobrimentos, prólogo da globalização.
Começámos esta abordagem com um extrato da epopeia nacional portuguesa e vamos concluí-la com uma homenagem feita por outro génio da nossa cultura, este mais recente, ao pai e estratega desta demanda épica:
O INFANTE
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce,
Deus quis que a terra fosse toda uma.
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
Fernando Pessoa, in Mensagem , 1934 (ed. Ática)