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“Maio 68 DO POÉTICO AO POLÍTICO” EXPOSIÇÃO DA ASSOCIAÇÃO DE ESTUDOS COMUNICAÇÃO E JORNALISMO

Escrito por em Maio 14, 2018

No âmbito da evocação dos 50 anos do movimento de Maio de 1968, a Associação de Estudos Comunicação e Jornalismo, inaugura na 4ª feira , às 18 horas, no espaço «Atmosfera M» situado na Rua Castilho nº 5, Lisboa, uma nova exposição com o tema;  “Maio de 1968 do poético ao político”.

José Rebelo, Presidente da AECJ, descreve a génese do movimento e o ambiente que se viveu nessa época:

“Ninguém o poderia prever. Em 15 de Março de 1968, Pierre Viansson-Ponté, prestigiado jornalista do Le Monde, escrevia um editorial lamentando o desinteresse, em França, pelos dramas que, então, se verificavam por esse mundo fora: no Médio Oriente, na América Latina, na Indonésia, no Biafra, na Grécia, no Kénia. Enquanto, nos mais diversos países – da Espanha à Argélia, do Japão ao Egipto, da América à Polónia – os estudantes se batiam por mais liberdade, em França a sua preocupação, acrescentava Viansson-Ponté, centrava-se na exigência de rapazes e raparigas acederem aos respectivos quartos.

A França aborrecia-se.

Mas eis que, um mês e meio após a visão tão desiludida do jornalista francês, Paris é abalado por um verdadeiro terramoto que, em poucos dias, se estende ao país inteiro.

Jornais, cartazes, slogans, hinos e canções, debates e discursos improvisados invadem os anfiteatros da Sorbonne, os salões dourados da Ópera de Paris e do Teatro do Odéon. Espalham-se pelas fábricas. E transbordam para a rua. Discute-se tudo. É o poder da palavra: trocada ou arremessada, apoiada ou contestada. Da palavra que, repentinamente, todos se sentem com direito a usar. O estudante. O operário. O comediante. O revolucionário e o burguês. O manifestante e o simples transeunte.

Na memória colectiva ficou, de Maio 68, a sensação de uma liberdade sem limites.

A exposição apresentada no espaço «Atmosfera m» restitui-nos documentos pessoais deixados à guarda do Comité Révolutionnaire d’Agitation Culturelle, instalado na Sorbonne, por parte de quem julgou ter chegado o momento de desafiar o interdito (poemas de gente anónima, recibos de doações para trabalhadores em greve como o de Marguerite Duras).

Restitui-nos a utopia que encheu paredes (slogans e cartazes, nomeadamente os produzidos no atelier popular da Escola de Belas Artes).

Restitui-nos o traço jocoso e, por vezes, displicente de cartoonistas como Wolinski, que viria a morrer em Janeiro de 2015 no ataque terrorista ao jornal Charlie Hebdo, aos quais nada escapa. Nem o nariz de De Gaulle. Nem a «croix de Loraine». Nem, tão pouco, a bandeira tricolor.

Restitui-nos a violência das cargas policiais e a destruição nas ruas através de fotografias e de capas de jornais que atapetaram as bancas, se venderam por comités criados para o efeito, ou se distribuíram gratuitamente: Action, autêntico porta-voz do movimento estudantil e L’enragé, talvez a mais audaz de todas as publicações então existentes; Rouge e Lutte Ouvrière, de inspiração trotskista; La Cause du Peuple e Ligne Rouge, que se reclamam do maoismo; Le Monde Libertaire, L’Insurgé e Action Directe, anarquistas.

Restitui-nos revistas de reflexão teórica como Cahiers de Mai e publicações provenientes de “comités de acção” criados em estabelecimentos do ensino secundário, como Barricades e Comités.

Restitui-nos órgãos oficiais de pequenas formações políticas situadas no limite da “esquerda convencional”, como Lutte Socialiste, editado pelo Partido Socialista Unificado de Pierre Mendes-France e Michel Rocard.

Restitui-nos comunicados redigidos e distribuídos na hora, graças a rudimentares impressoras manejadas com tanto de perícia como de ardor.

No seu conjunto, este material cobre o período de um ano, isto é, vai até Abril de 1969 em que, derrotado num referendo sobre regionalização, De Gaulle abandona, definitivamente, o poder. Mostra-nos, talvez numa tentativa de compensar o desvanecer da esperança revolucionária, outras lutas que se travam no mundo: em Cuba, na Checoslováquia, no Vietname, na Palestina. E exalta os estudantes que, no México, se batem pela libertação dos presos políticos, pela anulação da lei que pune a chamada “desordem social”, pela dissolução da polícia de choque, pela denúncia dos dirigentes políticos implicados em actos de repressão. Significativamente, Rouge titula na sua edição de 1 de Outubro de 1968: “Notre lutte continue à México”.

No auditório de «Atmosfera m» os visitantes da exposição podem ver fragmentos de dois filmes.

Um deles, intitulado Mai 68, un étrange printemps, não circula ainda, por falta de apoios financeiros, no circuito comercial. Durante dez anos Dominique Beaux, Jean-Baptiste Evette e Bernard Barazer entrevistaram alguns dos principais protagonistas desta estranha Primavera que colocou Paris no centro das atenções do mundo inteiro: Pierre Juquin e Claude Poperen, na altura dirigentes do Partido Comunista Francês, os sindicalistas Georges Séguy, Eugène Descamps e André Bergeron, responsáveis, respectivamente, da Confédération Générale des Travailleurs (CGT), da Confédération Française Démocratique du Travail (CFDT) e de Force Ouvrière (FO); membros do Governo da época como o então primeiro-ministro Georges Pompidou e os ministros Alain Peyrefitte, Jacques Chirac, Edouard Balladur e Raymond Marcelin; intelectuais próximos do regime como François Mauric; o chefe da polícia de Paris, Maurice Grimaud, considerado, pelos sectores mais conservadores da política francesa, como demasiado “tolerante”, demasiado

“mole” face ao evoluir da situação; antigos polícias e militares enviados para conter as manifestações.

Ao longo de três horas, desfilam perante nós testemunhos indispensáveis para quem se interessa pela história contemporânea. E, sobretudo, desfilam testemunhos que nos fazem descobrir o impensável. É que, durante alguns dias, assiste-se a um autêntico vazio do poder. De Gaulle desaparecera, deixando atónitos os seus colaboradores mais próximos. As portas dos gabinetes ministeriais escancaradas e as gavetas abertas por completo, como nos conta um antigo director da petrolífera ELF, convidavam ao saque. Que não houve. Interrogado no filme, Jacques Chirac, mais tarde primeiro-ministro e presidente da República, explica-se placidamente: «Não íamos ficar por ali a roer as unhas…». E Georges Pompidou, ao preparar-se para mais uma negociação com os representantes sindicais, solicita, inquieto, a Edouard Balladur, seu assessor para a área do trabalho e futuro chefe do Governo: “assegure-se de que há uma porta nas traseiras pela qual possamos escapar”…

Enfim, em Cannes, cineastas como Polanski, Truffaut, Godard, Louis Malle e Claude Chabrol opõem-se veementemente à continuação do Festival Internacional de Cinema que, afirmam, não pode ficar indiferente ao protesto nas escolas, nas fábricas, nas ruas. E o Festival é cancelado.

O outro filme, Mai 68, il y a 25 ans, relata a história que começa em 22 de Março, quando os estudantes se manifestam na Universidade de Nanterre e termina em Junho, quando os operários decidem, pelo voto, regressar ao trabalho. São 190 minutos de imagens pregnantes. De alegria desenfreada e de dor incontida. De discussões acaloradas. De esperança e de desalento. De ruas pejadas de manifestantes brandindo bandeiras vermelhas ou pretas, primeiro, às listas – azul, branca e vermelha –, depois. São as declarações radicais dos principais dirigentes estudantis, como Daniel Cohn-Bendit, Jacques Sauvageot e Alain Geismar. São as tentativas de recuperação política por parte de personalidades da oposição parlamentar, como François Mitterrand que se oferece para ser candidato às eleições presidenciais em caso de demissão de De Gaulle. São os “apelos à razão”, por vezes recebidos com indisfarçável amargura, de dirigentes sindicais como George Seguy que, uma vez conseguidas as principais reivindicações operárias, em Grenelle, se insurge contra o “aventureirismo esquerdista”. São as marcas de desânimo estampadas no rosto de um presidente da República que só recupera a altivez com o apoio das tropas francesas acantonadas em Baden-Baden. Mas é, sobretudo, a multidão subitamente solidária, o trabalhador da Peugeot ou da Renault, francês ou imigrante como aquele português que, na sua língua natal, exclama: “O combate que levamos não é o combate de um só, ou de dois, ou de um grupo determinado e reduzido de pessoas. O combate que levamos é um combate de todos. Sem discriminação de língua, de nacionalidade, de direitos”.

Estão igualmente disponíveis gravações áudio contendo, em particular, excertos do célebre debate com Jean-Paul Sartre, no Grande Anfiteatro da Sorbonne, e uma intervenção de Herbert Marcuse comparando a situação política e social em França e nos Estados Unidos da América.

A exposição encerra com reproduções de algumas primeiras páginas dos jornais portugueses Diário de Lisboa e Diário de Notícias. Curiosamente, enquanto o DL trata os acontecimentos com alguma parcimónia, já no DN, o mesmo tema preenche, frequentemente num tom dramático, quase toda a primeira página. Interessa ao DN transmitir a ideia de agitação, de violência que grassaria pelo mundo e da qual Portugal estaria protegido por uma espécie de cordão sanitário. Mas quando De Gaulle regressa, triunfante, o DN rejubila. Para quê tanta confusão? Tanto protesto? Tanta manifestação? A ordem estava restabelecida.

Os clamores de Maio de 68 rapidamente se escoam. Alguns meses depois, um slogan, algures numa parede do Quartier-Latin, conclui, liminarmente:

En tout cas, pas de remords”

Associação de Estudos Comunicação e Jornalismo

Os materiais expostos pertencem a José Rebelo e Manuel Anta. O filme Mai 68, un étrange printemps foi gentilmente cedido pelo Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e pela Associação Portuguesa de Estudos Franceses.