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HISTÓRIAS NUMA VIDA – O Natal do Burro Rinchão

Escrito por em Dezembro 22, 2021

Eugénio Rietsch Monteiro

HISTÓRIAS NUMA VIDA 

Por Eugénio Rietsch Monteiro

O Natal do Burro Rinchão

 

Não sei que acaso me levou, naquela manhã de domingo, a dar um passeio a pé pelos arredores da cidade.

Estava uma manhã fresca, mas linda, de fim de outono.

Fui caminhando e ia ficando surpreendido palas transformações que, desde os meus tempos de adolescente, ali se tinham operado.

Campos de milho, soutos de magníficos castanheiros ou o velho campo de futebol que tinham sido palco privilegiado de aventuras heroicas que, juntamente com os meus colegas, transponhamos dos livros do Emílio Salgari para o nosso imaginário, estavam agora transformados em aglomerados de betão, sem raça, incaracterísticos, que mais não passam de depósitos de pessoas quase sem espaço para viver; simples dormitórios ou locais de contemplações televisivas que ainda mais contribui para a massificação das gentes, moldando-as com padrões uniformes, a maioria incapaz, já, de raciocinar pela sua cabeça, de tal modo é obsessiva a influência da televisão.

Ali havia, entre algumas construções, uns bocados de terreno ainda vagos, esperando a sua vez de serem transformados em betão e tijolo, ainda meio selvagens e que, regra geral, serviam de local provisório de acampamento de ciganos numa breve paragem da sua eterna peregrinação.

Sem querer, ou sem dar por isso, fui atravessando alguns desses terrenos e, a dada altura, uma figura estática chamou a minha atenção. Era um burro evidenciando sinais de velhice que, calmamente, se abrigava dos raios do sol outonal à sombra ténue duma árvore que já se encontrava despojada de grande parte das folhas, começando já a preparar-se para o rude inverno que inexoravelmente se aproximava.

Fiquei um momento olhando para o animal e qualquer coisa me atraia para ele. Avançando alguns passos na sua direcção pareceu-me que o bicho também me olhava com evidente interesse.

Filosofando, para mim mesmo, sobre os problemas da vida, da juventude e da velhice que mais tarde ou mais cedo para todos chegará, fui-me aproximando mais.

Novamente a estranha sensação de que o animal me observava como se estivesse a lembrar-se de alguma coisa. Olhei-o com maior atenção e julguei pressentir nele um estremecimento, mas talvez fosse um movimento muscular para afastar alguma mosca outoniça que arrelia tanto pessoas como animais.

Em determinada altura tropecei num calhau e quase ia caindo. Ouvi, então, com grande espanto, uma voz grave e agradável que dizia:

Cuidado!

Olhei em volta e não vi ninguém. Na modorra daquele dia outonal apenas o burro e eu.

Foi ilusão!

Fui-me afastando lentamente e, quando estava quase a chegar ao fim do campo instintivamente olhei para trás para o burro e, nesse preciso momento, o animal soltou três zurros que chegaram aos meus ouvidos como queixumes doces mas repassados de amargura.

Retirei-me apressadamente e dirigi-me para casa onde me esperavam para o almoço.

Como habitualmente, falamos, contamos histórias, dissertamos sobre política e a tarde foi passando… mas a cada passo, sem mesmo me dar conta como, vinha-me à ideia a figura do burro e, sobretudo, o som dos seus zurros que cada vez me pareciam mais angustiantes.

Passou a semana.

A minha vida profissional absorvia – me de tal forma que não me dava tempo de pensar em muito mais. No entanto, a figura do burro aparecia-me por vezes de tal modo que tomei a decisão de voltar lá na primeira ocasião para o ver.

Mau tempo, viagens e ocupações diversas, impediram-me de lá voltar tão cedo quanto tinha imaginado. O sol continuava a sua viagem baixando cada vez mais no horizonte, os dias diminuíam a passos agigantados e a luz tornava-se cada vez mais fraca.

Finalmente, num domingo dos finais de Novembro, o tempo estava bom. Resolvi, então, ir de novo dar um passeio matinal até aos domínios da minha juventude. Na realidade, levava a esperança de encontrar o burro.

E, de facto, ele lá estava!

No mesmo sítio, debaixo da mesma árvore agora despojada de folhas, tentando aquecer-se a um sol magro, ténue, mas mesmo assim irradiando ainda algum calor.

Pareceu-me mais velho, com ar mais alquebrado.

Ao aproximar-me dele, repentinamente, deu um zurro que me pareceu de satisfação.

Ilusões, voltei a dizer para mim mesmo.

O certo é que o animal me fitava com um olhar extremamente terno; desenhava-se na sua cabeça um ar que tinha qualquer coisa de humano. Dava até a impressão que, dum momento para o outro, se poria a falar.

Ao ter esta impressão senti-me profundamente perturbado, a tal ponto que voltei as costas decidido a ir embora.

Nessa altura ouvi novamente uma voz, grave e agradável, que dizia:

Por favor, não vá já embora! Gostava de falar consigo!

Ouvi, ou tive a sensação que ouvi?

Ouvi, ou foi alguma onda que saindo do cérebro do quadrupede foi recebida no meu como uma mensagem saída de uma antena e captada por um aparelho de radio?

Fosse o que fosse, percebia perfeitamente o animal.

Sentei-me num velho tronco a seu lado e ali estivemos bastante tempo olhando um para o outro e eu sempre recebendo mensagens, ou ouvindo o burro falar.

É verdade, sou eu! Velho e revelho, mas ainda sou o burro Rinchão!

Não é possível!

Que de catadupas de lembranças de infância me passaram subitamente diante dos olhos, como se estivera a ver um filme?

Era então o Sr. Burro Rinchão das histórias que ouvia contar ao meu pai quando era menino e que faziam as delícias dos meus irmãos e de mim e de que ainda hoje sinto saudades.

Instintiva e mentalmente, disse:

É verdade que é o Sr. Burro Rinchão?

Ó meu menino disse ele (deixe-me trata-lo assim) já não sou o burro rinchão, sou já e somente um pobre animal à espera de deixar esta terra que, no fim de contas, não me deixa saudades, tais os padecimentos que sofri e vi sofrer à minha volta.

Ora, disse-o mais por cortesia do que por convicção, ainda está aí para durar!

Não vale a pena discutir sobre isso. As coisas são como são e nada as pode alterar.

Diz então o Sr. Burro Rinchão que não tem saudades desta vida? Correu tudo assim tão mal?

Como todos os bichos ou as pessoas, tive momentos de alegria (raros), e de tristeza; tive momentos de descanso (raros) e momentos de trabalho intenso. Obrigavam-me a trabalhar como um escravo; quando não podendo mais, arreava, obrigavam-me a por de pé à pancada. Para comer soltavam-me num campo, às vezes pelado, e eu que me desenrascasse.

Mas isso é uma barbaridade, balbuciei.

É, pois. Mas, e o que eu vi sofrer? Lembra-se da lixeira que aqui havia?

Se me lembro!

Pois nessa mesma lixeira vi eu muitas pessoas esgravatando á procura de qualquer coisa para comer e para dar de comer aos filhos. Não se recorda como todos os dias os sinos tocavam a defunto?

Eram os anjinhos, diziam-nos, que iam em direcção ao Céu!

Hipócritas! Eram as crianças que morriam à míngua de alimentas e de cuidados!

Vi bandos de homens e mulheres que nada mais podiam fazer do que mendigar por todo o lado pois não havia recurso nem trabalho. Algumas pessoas davam esmola tentando esquecer a esta gente e aliviar as suas consciências.

Quantos sofreram por quererem a miséria abolida e não socorrida?

… e o animal continuava embalado, arfando, com a respiração cada vez mais alterada e eu nem ousava falar nem pensar.

Hoje, as coisas estão melhor! Mas quem fala do que se passou? Quem foi responsabilizado pelos males que assolaram o mundo e que quiseram fazer crer a toda a gente que Deus sabe o que faz e que é infinitamente misericordioso?

Deu dois passos em frente e, a tremer, chegando mais ao pé de mim, exclamou:

Mentira! É tudo mentira! Só a natureza existe e nós, bichos e homens não passamos de objectos em transformação no meio desta desordem organizada.

O Rinchão calou-se e eu fiquei abismado.

Como era possível o burro discernir daquela maneira e eu ouvi-lo e entende-lo?

Momento de silêncio.

A certa altura ouvi passos nas proximidades e uma voz que dizia:

Ó Joaquina, olha para aqueles dois, o burro e o homem; até parece que estão a ter uma grande conversa-

A Joaquina exclamou alto e bom som: um é burro e o outro, sem dúvida, é maluco!

E deu uma enorme gargalhada dizendo: o que mais havemos ainda de ver?

Voltou a gargalhar e continuaram o seu caminho.

Tinha passado o tempo quase sem dar por isso. O ar estava acentuadamente mais frio e senti de repente alguns arrepios.

Bem. Vou embora na próxima semana e desde que possa cá voltarei para lhe fazer uma visita.

Até à semana e não apanhe frio, disse o bicho carinhosamente.

Mais uma semana passou.

Aproximava-se o Natal com todo o cortejo, que já se iniciava de sugestões para presentes e festas que mais não passavam de incentivos ao consumismo. Mas, durante a semana, o encontro com o burro não me saía da cabeça a tal ponto que me interrogava se tinha acontecido ou se tinha sonhado.

Não! Tinha sido bem real.

Ansiei para que chegasse o Domingo pois muita coisa tinha a perguntar ao Sr. Burro Rinchão da minha infância.

De que se lembraria ele?

Que factos estariam gravados na sua memória de que já ninguém se lembra ou que alguém decidiu ocultar e fazer esquecer?

Os animais selvagens lutam pela sobrevivência e para a perpetuação da espécie.

E nós? No princípio assim teria sido, também. Contudo, com a evolução social nasceram as cobiças, os ódios, as ambições, as tentações do poder esquecendo-se que fatalmente, esse poder é transitório.

Pois tudo isso, e outras coisas mais, eu gostaria de discutir com o burro, aproveitando da sua sabedoria e experiência. Queria respostas e excitava- me a ideia de poder vir a tê-las.

Arrastei penosamente os dias até ter oportunidade de voltar a ver o meu amigo.

Aquele dia nasceu enevoado e triste.

Dirigi-me para o local onde poderia encontrar o Sr. Burro Rinchão.

Sem nenhuma razão aparente, sentia-me triste. Por ser Natal?

Quando saía de casa, um carro sonoro fazia em altos berros propaganda ao circo que se instalara na cidade como, alias, todos os anos acontecia na época natalícia.

Ansiosamente, fui-me aproximando do local do encontro habitual. Divisei, então, o velho carvalho ao lado do qual sempre encontrara o animal.

Estava só, solitário, com os seus ramos já desfolhados e nus no recolhimento triste que, para a árvore iriam desabrochar novamente na Primavera seguinte, dando origem a um novo ciclo da natureza.

Mas, e o burro Rinchão?

Não estava lá!

A certa altura vi umas mulheres que atravessavam o caminho e que, ao verem-me, disseram com um ar misto de ironia e zombaria:

— Ó Sr.! O seu amigo não está cá. Como está ai o circo de Natal os ciganos venderam-no para alimentar os leões.

Virei costas sem nada dizer e a impressão de tristeza com que acordara tornou-se mais densa e real.

 

Lentamente, voltei para casa sem pensamentos concretos, sem reações filosóficas. Apenas com uma grande amargura como que sentindo-me órfão pela segunda vez.

Porto, 26 de Dezembro de 2002

Conto extraído do Livro Histórias de Uma Vida Publicado por Eugénio Rietsch Monteiro


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