HISTÓRIAS NUMA VIDA «A Prenda de Natal do Palhacinho»
Escrito por Paulo António Monteiro em Maio 7, 2020
HISTÓRIAS NUMA VIDA
Por Eugénio Rietsch Monteiro
A PRENDA DE NATAL DO PALHACINHO *
Obedecendo aos movimentos cósmicos que tudo regem o Sol declinava cada vez mais e o Natal, para nós, aproximava-se a passos gigantescos.
Por essa altura, na nossa terra, havia acesas discussões sobre uma projectada obra que iria destruir o imenso e centenário bosque e a notável harmonia da nossa comunidade.
Nessa altura era o Gonça uma criança com doze anos que, estando inserida no seio duma família com um nível cultural acima da média tinha, talvez por essa razão, um elevado interesse por tudo o que o rodeava sobretudo no que dissesse respeito à Natureza ou à vida selvagem. Embora ainda se interessasse por brincadeiras infantis começava já a manusear o computador procurando encontrar, via internet, respostas a qualquer assunto ou questões que o preocupassem.
Tinha no seu quarto, pendurado na parede, um pequeno palhaço de pano, oferta dum seu tio quando completou dois anos, a quem tinha grande amor e que em tempos fora seu confidente, todas as noites. Nunca se deitava sem contar ao Palhacinho as suas aventuras, boas ou más, durante o dia.
Era um diário falado.
Com o passar do tempo e o avanço da idade deixou de falar todos os dias com o Palhacinho embora nutrisse por ele um especial carinho.
Um dia pendurou-o na parede, mesmo em frente à sua cama, local onde ainda se encontra, e a quem todas as noites enviava um beijo antes de adormecer.
A casa do Gonça situava-se num local privilegiado, adjacente a um imenso bosque, já nos arredores da pequena cidade. Esta coincidência também contribuiu para o seu gosto pela natureza. Desde muito pequenino se habituou a ver o nascer do Sol e a Luz que espalhava por todo o lado; habituou-se, também desde pequeno, a ver e ouvir os melros, os esquilos, as corujas, os grilos, as raposas e duma maneira geral todos os animais selvagens, além das galinhas, patos, perus, etc. que se deslocavam livremente num recinto próprio para isso.
Quantas vezes foram com o Pai, em silêncio, até à Capela a fim de ver, sobretudo no verão, as corujas que saiam lenta e silenciosamente do campanário onde tinham os ninhos, para ir caçar ratos pois tinham de alimentar os filhos; quanta vez ao ir para a escola não parou extasiado na beira dum caminho ouvindo um grilo; quanto tempo passou, logo de manhã cedo, à janela do quarto ouvindo cantar os melros que, de já tão familiarizados com ele, quase vinham até junto de si e a quem dava a comer cerejas, no tempo delas, que estes tições emplumados muito apreciavam.
Em suma, conhecia todos os bichos das redondezas e estes também lhe retribuíam.
Sobretudo na Primavera e no Verão era certo e sabido que todas as noites tinha histórias de bichos para contar ao Palhacinho; ou eram os melros a incitar os filhos a sair do ninho para que aprendessem a voar, ou era uma raposa que passava furtivamente à procura de sustento para os filhos, ou os cães ladrando alegremente quando se apercebiam dele. Enfim, tudo aquilo que observava durante o dia contava à noite ao Palhacinho, até quando a Mãe e o Pai parecia estarem zangados ou a Avó estivesse doente.
O Palhacinho, como ternamente sempre lhe chamara, era o seu confidente.
Até parecia, dizia ele, que lhe sorria.
Um dia, ao chegar da escola, assistiu a uma conversa do Pai com uns amigos. Estavam muito zangados pois o Presidente queria fazer passar uma estrada pelo meio do bosque. Na opinião deles esta estrada seria uma vergonha pois iria estragar aquele bosque quando havia outras maneiras, provavelmente um pouco mais caras, que preservavam a integridade do bosque.
E isso não tinha preço!
O Gonça, ao ouvir isto perguntou, de sopete: então o que vai ser de todos os bichos meus amigos?
– Não te preocupes demais, rapaz, disse um deles, isto ainda não é para já mas se tiver que ser…terá mesmo de se fazer.
– É o custo do progresso.
O Gonça nada disse.
Ficou triste e, nessa noite, antes de dormir, contou ao Palhacinho tudo o que se passou.
A vida continuou e notícias sobre a estrada iam surgindo, de vez em quando, umas vezes a favor, outras contra, mas nada ainda estava decidido. Aguardava-se a convocação duma Assembleia de freguesia para se discutir e resolver definitivamente este assunto.
E o tempo foi passando…e o Natal estava à porta.
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Naquela noite a lua cheia tudo iluminava e dava a cada objecto, fosse uma árvore, um penedo, um monte ou o céu dum azul profundo, um contorno irreal.
Tudo era beleza e serenidade.
Não se ouvia o mais pequeno ruído.
Face a este inusitado silêncio dir-se-ia que a Natureza tinha adormecido completamente.
Pura ilusão…
Aqui e ali começaram a sentir-se alguns movimentos de sombras que se dirigiam a um lugar determinado. Viu-se, então, a dado momento que, num recanto esconso do bosque, havia já alguns animais que parecia falarem animadamente.
À luz quase irreal da lua cheia podíamos ver a Raposa sentada tendo a seu lado a Lebre; mais ao lado o Melro parecia ter uma longa conversa com o Esquilo; mais além a Coruja e o Mocho conferenciavam gravemente com o Cão.
– Ainda falta muita gente, disse de repente a Raposa que parecia estar a presidir a esta reunião.
– Já sabemos que o Lobo, a quem também mandamos um convite para esta reunião, não pode vir pois a viagem é longa e estando a época da caça em pleno ele tem de proteger os seus.
– Faltam ainda a Corça, o Veado e sobretudo o Palhacinho que, como sabeis, foi quem teve a ideia desta reunião. Vamos aguardar mais uns minutos.
Tenho fé de que nada lhes aconteceu.
Realmente nada de mau tinha acontecido.
O Veado e a Corça tiveram de fazer um grande desvio para evitar um acampamento de escuteiros; o Grilo da perna torta , por já estar um pouco velho, teve de vir muito devagar arrimado à bengala e o Palhacinho teve de esperar que o Gonça adormecesse .
Outros foram, entretanto, chegando: o Galo, a Gineta mais o Coelho, bem como o Gaio acompanhado do Musaranho.
O momento devia ser grave para que estes animais que por uma imposição inexorável da Natureza, a que eram totalmente alheios, quotidianamente se caçavam entre si para sobreviver, estivessem ali naquela noite discursando como bons amigos.
Até dava gosto vê-los.
– Por que razão a Mãe natureza nos criou assim?
-Qual a razão pela qual a sobrevivência duns tem de ser o fim de outros?
Mas há excepções e aquela era uma noite de excepção.
O momento era grave para toda a comunidade do bosque.
Chegaram finalmente os retardatários que prontamente se sentaram ao lado dos outros.
– Bem, disse a Raposa, como já estão todos o Palhacinho vai explicar a razão desta reunião.
– Faz o favor de falar, amigo Palhacinho!
– Meus amigos, como sabeis está em discussão um projecto duma estrada nova, acompanhada dum projecto ainda secreto de urbanização, que destruirá o nosso bosque e, por conseguinte, a nossa sobrevivência. Eis a razão pela qual aqui estamos todos unidos, apesar das nossas diferenças e de alguns ancestrais antagonismos, a lutar por aquilo que é nosso e de que depende a nossa própria sobrevivência.
Assim os humanos também pudessem agir do mesmo modo…
– Alguém tem uma ideia do que possamos fazer?
– Antes de mais nada, disse o Mocho com a sua habitual sabedoria, julgo que deveríamos indagar o que verdadeiramente se está a passar e quais os planos para isso e, sobretudo, quem está por detrás disto tudo e qual o verdadeiro interesse. Tanto quanto pude saber até agora a estrada pode fazer-se por outro lado e a urbanização, não sendo de todo necessária, não passa dum negócio que destruirá implacavelmente este bosque centenário apenas para meter dinheiro nos bolsos de alguém.
O Melro pediu a palavra e disse:
– Tanto quanto já pude descobrir eles não estão todos de acordo, ainda há muitos que não querem a destruição do bosque. Quem está mais acirrado a favor disso é o Presidente.
– Na reunião não resolveram nada e ficou marcada uma nova para Dezembro, por altura da lua nova, para tomarem uma posição definitiva.
Entretanto a Raposa disse:
– Temos de actuar depressa.
– Tenho um plano que delineei entretanto. Se estiverem de acordo, passamos à acção.
– Venha ele, disseram algumas vozes.
– Bom, primeiro teremos de obter informações mais precisas sobre o que pretendem fazer.
-Para isso, o Melro, o Cão e o Pardal que estão familiarizados com aquela gente e podem passar despercebidos, deverão andar por lá tentando ouvir conversas para descobrir o que se passa. A Coruja, como se desloca à noite e ainda não está frio, também pode aproveitar para espiar as conversas no adro da Igreja e o Rato pode entrar clandestinamente no gabinete do Presidente e ouvir o que se passa por lá.
– Qualquer informação será transmitida à Pega que se encarregará de a levar a todos.
-Proponho, também, uma nova reunião dentro de oito dias para avaliar a situação.
– E agora vamos embora que começa a clarear e torna-se perigoso andar por aí à luz do dia.
Após estas palavras, despediram-se com afecto e regressaram calma e ordeiramente aos seus lares.
O Palhacinho quando chegou teve receio que o Gonça já tivesse acordado para ir ouvir a Toutinegra, mas, felizmente, ainda dormia bem ferrado.
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Naquele ameno fim de tarde estava o Presidente sentado num banco no adro da Igreja.
Via-se que estava inquieto e que esperava ansiosamente por alguém que tardava em chegar.
Do alto da torre a Coruja espiava atentamente.
Passado algum tempo chegou finalmente o Jorge Caneca, personagem execrável, detestado por toda a comunidade mas que mercê da sua falta de verticalidade, e das traições sucessivas que praticava, ia levando a sua vida. Estava sempre pronto a mudar de opinião desde que lhe conviesse, atraiçoando descaradamente aquilo que momentos antes havia dito; feio, baixo, gordo, sempre porco, tanto no corpo como no íntimo, era por toda a gente mal visto ou desprezado, mesmo por aqueles que dele se aproveitavam, pois já sabiam que seriam atraiçoados na primeira ocasião. Era a pessoa ideal para os negócios escuros. Era, pois, deste ser abjecto que o Presidente estava à espera e negócios com gente desta laia também não abonavam muito a favor do Presidente.
Ao vê-lo a Coruja estremeceu.
– O quê? O que anda este vigarista a tramar agora com o cretino do Presidente?
Levantou voo e foi empoleirar-se silenciosamente num galho duma árvore nas proximidades do banco em que estavam sentados.
Dali podia perfeitamente ouvir toda a conversa.
– Pois é como lhe expliquei, Jorge, você tem de falar com os membros da Assembleia que já bem conhece de outros negócios e convencê-los a votar esta disposição. Diga-lhes que, desta vez, a coisa é demasiado séria. Não só não se trata de trocados mas também está metida nisto gente graúda, mesmo muito graúda, em quem nem mesmo você sonha, embora sejam parecidos consigo.
– Bolas, Sr. Presidente, também não é preciso insultar, exclamou o Jorge aparentando um ar de sofrimento. Alguma vez o deixei ficar mal?
– Bom… bom, adiante que atrás vem gente.
Neste momento o Jorge Caneca voltou-se para acender um cigarro e viu a coruja empoleirada na árvore, de olhos fechados, como se estivesse a dormir.
– Maldito bicho, berrou, vai-te daqui para fora. Raios partam estas aves agoirentas, dão-me sempre arrepios, quando as vejo.
– Deixe lá o pássaro dormir sossegado e vamos ao que interessa.\
– Mas afinal o que é que eu tenho de fazer?
– Você vai falar com os seus habituais amigos e prometer-lhes tudo o que lhe vier à cabeça e explicar-lhes que, como já viu, este é um negócio fabuloso. Aqui há graveto a sério para todos.
Eles apenas têm de votar a favor de tudo o que eu propuser.
– Ó Presidente, mas afinal quem é que está atrás disto? Não acredito que seja ideia sua. É areia de mais para a sua camioneta.
– Mau! Está a querer rebaixar-me?
– Deus me livre de tal coisa, disse logo pressurosamente.
– Consigo o seguro morreu de velho. Em devido tempo saberá tudo em pormenor. Por agora só tem que fazer o combinado. A si só lhe interessa o dinheiro e mais nada e esse não vai faltar-lhe. Faça o seu trabalho que eu faço o meu.
– Ó Presidente, e o Dr. Liberto?
– A esse” maçónico” não há possibilidade de comprar, por isso temos que assegurar a maioria através dos nossos apaniguados. Prometa-lhes tudo o que quiserem, depois logo se arranjará maneira de resolver o assunto. E não se esqueça de inutilizar o papel que lhe deixei ontem com este esquema montado. Mesmo não estando assinado ainda podem reconhecer pela letra: Raios, porque não me habituo a escrever com a droga do computador?
– Não se preocupe, disse o Caneca sorrindo duma maneira estranha.
– Toca a andar antes que comecem a desconfiar de estarmos por aqui tanto tempo na conversa. E não se esqueça que tem de os convencer.
– Vá tranquilo, Presidente, desde que haja graveto suficiente, são favas contadas.
Levantaram-se e cada um se afastou rapidamente para o seu lado.
Mal eles foram embora a Coruja levantou voo e dirigiu-se imediatamente à procura da Pêga para lhe contar estas maquinações para que pusesse todos os membros do bosque ao corrente do que se estava a passar a fim de que pudessem gizar um plano em conformidade.
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Ao deixar o Presidente, o Jorge Caneça foi a casa buscar o célebre papel que, mesmo não estando assinado, comprometia gravemente toda a operação pois estava lá tudo discriminado. Só faltavam os nomes de quem estava por detrás desta operação. O Caneca, no entanto, resolveria tentar saber quem eram nem que para isso tivesse de recorrer à chantagem, como habitualmente. Num canto do papel escreveu: esquema pensado e fornecido pelo Presidente! Sorriu e disse para consigo que tinha de ir falar com o Coveiro para com ele combinar a melhor forma de levarem mais algum.
O Coveiro era o seu sócio habitual, não só nestes negócios mas também com a mulher.
Dirigiu-se lestamente para casa do Zé Coveiro e, em determinada altura, avistou o Cão e começou logo a insultá-lo mentalmente; na realidade, ele nem mesmo sabia porquê, não podia ver o Cão que, creio eu, lhe pagava na mesma moeda.
Quando já se encontrava à porta do Zé Coveiro sentiu que o Cão andava por ali, distraído, a farejar. Não podendo resistir à raiva que tinha ao Cão, no momento em que ia a passar ao seu lado espetou-lhe um valente pontapé ao mesmo tempo que rugia: fora, saco de pulguêdo!
Acto continuo o Cão deu-lhe uma valente mordidela de que tão cedo não se esqueceria.
– Ai! Ai! Ai a minha perna, maldito bicho. Acuda ó Zé Coveiro.
Ainda tentou acertar com um rebo no Cão mas este já se encontrava estrategicamente fora do seu alcance.
Apareceu o Zé Coveiro que o amparou para dentro de casa.
– Entre, entre, amigo Jorge, venha beber um copo que isso não é nada.
– Raios, não é nada porque não é a sua perna e você está habituado a que os seus clientes estejam sempre de acordo consigo pois que nunca nenhum deles reclamou.
– Ande lá, entre que eu esfrego-lhe a perna com um pouco de aguardente e isso passa.
– Não, a aguardente é para beber e não para estragar, vamos lá emborcar uns goles. Disto isto entrou na casa do Coveiro e sentou-se junto à janela de costas para fora. Estava tão transtornado que nem reparou que no parapeito deambulava o Pardal, debicando aqui, picorando acolá, com o ar mais inocente deste mundo.
Entretanto, o Coveiro chegou com dois copos e uma garrafa; sem demoras disse-lhe de chofre: Ó Zé, estamos ricos!
– O quê?
Tirou um papel do bolso que agitou diante do nariz do outro, sem todavia lho mostrar, ao mesmo tempo que anunciava: é este papel que nos vai pôr ricos.
– Mostre lá isso!
– Impossível, para já; a seu tempo verá. Agora só é preciso que me ajude, como de costume, a dar a volta aos nossos habituais amigos. E contou ao Coveiro a conversa com o Presidente ao mesmo tempo que lhe dava instruções quanto ao modo de agir.
Desta vez sempre vai deixar de ser Coveiro e passar a ser um senhor. Tome bem nota, aqui há muito dinheiro e está gente da alta metida nisto com o Presidente. Só que desta vez queremos mais do que migalhas.
Que acha?
Venha de lá mais um copo, disse sem aguardar resposta. Foram falando e bebendo e, em determinada altura, o Coveiro deu um berro e levou a mão a uma perna
– Ai! Ai! Ai a minha perninha.
– Mas o que lhe aconteceu, homem de Deus?
– Não sei, alguém me deu uma ferradela e o Cão não anda por aqui que você bem lhe arrumou uma pedrada.
– Mostre lá isso.
Quando o Coveiro levantou a calça o Caneca pousou o papel sobre a mesa e apalpou aquele bocado da perna para o examinar bem.
– Quanto a mim isto é uma mordidela de rato e é melhor desinfectar com um bocado de aguardente pois estes bichos andam metidos em toda a merda. São quase como o Presidente, disse com uma gargalhada.
Enquanto estavam distraídos, o Pardal voou para a mesa e arrebatou o papel fugindo lestamente com ele no bico.
Lá fora, já longe da casa, encontrou-se com o Cão e explicou-lhe o que se passou não se esquecendo da ajuda do Rato.
– A reunião da Assembleia é já amanhã de tarde, já temos muito pouco tempo. É preciso fazer chegar esse papel ao Dr. Liberto mas antes temos de participar na nossa reunião desta noite para informar todos os nossos amigos e escolher o modo de lhe fazer chegar este papel.
Quando o ler ele saberá escolher a melhor maneira de o utilizar.
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A noite estava agradável e, para uma noite sem Lua pois estavam em lua nova, até estava razoavelmente clara.
Os animais foram chegando apressados e excitados com o que iriam ouvir.
Sem mais delongas a Raposa abriu os trabalhos e encarregou o Palhacinho de informar sobre o plano que tinham delineado e pô-lo à votação.
– Amigos, começou o Palhacinho, como sabeis já pelas informações que difundiu a Pega, temos connosco um papel que pode salvar o nosso bosque. A reunião da Assembleia é amanhã ao fim da tarde e temos de conseguir que, ainda a tempo de preparar a sua actuação, o Dr. Liberto tenha este papel na mão.
… E exibia com visível emoção o papel que o Pardal havia retirado ao Jorge Caneca quando ele, já bem bebido em companhia do Coveiro, o pousou, sem disso se ter apercebido, em cima da mesa.
– Como faremos?
O Mocho pediu a palavra e com a sabedoria e a calma que todos lhe reconheciam disse:
– O Dr. Liberto, como sabemos, vai logo pela manhã ao jardim dar de comer aos pássaros; como sabem, ele tem uma particular afeição pelo Melro que anda sempre à sua volta; proponho, por essa razão, que o nosso amigo Melro vá, logo pela manhã, fazer chegar esta carta ao seu destino. Acho que deveria ser acompanhado pelo Cão e pela Raposa para o defenderem se for caso disso. O Palhacinho, que foi quem teve esta ideia, é que deveria ir mas todos nós sabemos que não pode e por que razão.
Acto contínuo, simultaneamente, todos eles gritaram:
– Muito bem. Muito bem. Apoiado!
Então o Palhacinho levantou-se e, virando-se para os emissários, disse gravemente:
– Amigos, o destino deste bosque está desde agora nas vossas mãos e na sabedoria do Dr. Liberto. Cumpri a vossa missão. E todos vós, meus amigos, retirai-vos em Paz e tende confiança de que ainda pode haver justiça neste mundo. Não devereis esquecer nunca que enquanto formos solidários, determinados e confiantes uns nos outros, nunca este bosque será destruído.
Na próxima lua cheia, desde que tudo corra bem e como estamos no Natal, faremos aqui mesmo uma festa para comemorar.
E todos se foram afastando, com ar grave mas com a esperança no coração.
__6__
Pela manhã, logo ao romper do dia, o Melro acompanhado pelo Cão e pela Raposa, que prudentemente se escondia como podia, aproximaram-se da casa do Dr. Liberto que se situava muito próximo do bosque, num local meio isolado. Passado pouco tempo deram com o Dr. Liberto passeando com um ar tristonho, dum lado para o outro.
Estava tão absorto nos seus pensamentos que nem se apercebeu dos animais. Então, o Melro empoleirando-se num ramo dum arbusto próximo dele, pôs-se a cantar.
– Ah! Estás aí, meu amigo. É bom ouvir-te cantar, mas… quanto mais tempo terás tu oportunidade de cantar neste bosque que pretendem destruir?
E olhava tristemente para o Melro.
Este deu um salto para outro galho e emitiu um som estranho que o Dr. Liberto nunca tinha ouvido. Logo após apareceu o Cão junto do velho médico, com um papel na boca. A princípio o Dr. Liberto teve dificuldade em compreender mas, perante a insistência do Cão, reparou no papel e retirou-lho do focinho.
Ao percorrer as linhas escritas, exclamou:
– Não compreendo como vocês fizeram isto, mas talvez com este papel eu ainda possa salvar a situação. E quando se voltou para perguntar como foi aquilo possível, já não viu ninguém, apenas ouviu o som da Raposa a regougar, do Cão a ladrar e do Melro a assobiar como se fora um alegre coro entoando por todo o bosque.
A Luz, nessa manhã, brilhava com grande intensidade e o Sol resplandecia.
__ 7__
Antes da reunião da Assembleia o Dr. Liberto aprazou uma reunião a sós com o Presidente.
Nunca ninguém soube o que disseram um ao outro mas o Presidente, ao entrar na Assembleia, tinha um ar soturno e desiludido.
Na terra não se falava noutra coisa.
Da Assembleia tinham desaparecido, entretanto o Jorge Caneca e o Coveiro.
O Presidente, com ar desanimado e infeliz, ao abrir a sessão informou que, por instruções recebidas nessa tarde, tinha resolvido retirar da ordem dos trabalhos a discussão sobre as obras de transformação do bosque.
A Lei não permitia que se tocasse no bosque.
Como era praticamente o único ponto da ordem de trabalhos, encerrou a sessão e retirou-se apressadamente.
Logo que a notícia foi conhecida apareceu o Zé do bombo que, como nunca, nem quando estava bêbado que era quando tocava melhor, tirava maravilhosas sonoridades do bombo que punham todos com óptima disposição. Estava contente ou não fora ele um dos grandes adeptos da manutenção do bosque.
Nessa noite, em casa do Gonça, também não se falava noutra coisa. Então ele não se cansava de falar, de perguntar; queria saber tudo e como tudo tinha acontecido. Estava contente, agora já podia continuar a passear livremente no bosque, contactar com os seus amigos, ouvir os grilos ou os melros, com a certeza de que tão cedo ninguém se atreveria a mexer no bosque.
Já um pouco cansado, o Gonça foi deitar-se mas antes de se meter na cama ainda teve tempo de parar em frente do Palhacinho, contar-lhe o que se passou e dar-lhe um beijo.
Pouco tempo depois a Mãe foi lá ver como ele estava e dar-lhe as boas noites e ele, já ensonado, disse-lhe:
Ó Mãe, quando contei ao Palhacinho o que aconteceu, ele olhou para mim, sorriu, e até parece que me convidou para uma festa de Natal; foi a melhor prenda que o Pai Natal me podia ter dado.
E adormeceu profundamente como uma linda criança que ainda era…
Pedrouços, Maia, 24 de Outubro de 2013
* Conto publicado no Livro “Histórias Numa Vida”