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HISTÓRIAS NUMA VIDA «A PAIXÃO DO PANTUFAS»

Escrito por em Julho 13, 2020

HISTÓRIAS NUMA VIDA 

Por Eugénio Rietsch Monteiro

A PAIXÃO DO PANTUFAS

Esta é a última história da minha vida que te conto…

Assim começava a carta que acompanhava um envelope com documentos que a “Puta Velha” me endereçou, pela última vez.

Começava assim!

Já lá vão muitos anos mas é como se tivesse acontecido ontem.

Esta foi a mais extraordinária história que até hoje vivi e cuja lembrança ainda me deixa um sentimento difícil de exprimir.

Culpabilidade? Exploração? Arrependimento? Experiência? Loucura? Imoralidade? Ternura? Ternura, apesar de tudo…

Não sou capaz de dizer ao certo, talvez uma súmula de tudo isto.

Fui uma ocasião passar uns dias com um amigo numa recôndita povoação lá para as bandas do Gerês.

Na povoação habitavam ainda algumas pessoas, já de idade avançada, que se recusaram sempre a abandonar o local onde tinham nascido.

Os que ainda podiam fabricavam umas leiras adjacentes às modestíssimas casas em que viviam.

Uma vez por semana, a junta de freguesia se encarregava de lhes fornecer alguns alimentos para a semana ao mesmo tempo que se inteirava do seu estado de saúde e, se fosse caso disso, lhes providenciar um médico ou cuidados de enfermagem.

Quando soube da existência dessa localidade logo me veio a vontade de ir lá passar uns tempos.

Tendo arranjado um amigo com ideias parecidas com as minhas, resolvi lá ir e consegui que, a troco de alguns escudos, ainda era o escudo, me emprestassem uma casa no extremo do povo.

A casa era mais do que modesta.

Tinha uma espécie de sala de entrada com uma lareira e, ao fundo, uma porta que dava para um quarto que mais não tinha do que uma cama, uma mesa, uma cadeira e um velho armário de carvalho; num canto tinha uma pequena porta que dava acesso a uma casa de banho muito reduzida e simples.

Como estávamos no verão e era por poucos dias aceitamos a proposta que nos fez a D. Josefa que era a proprietária do barraco e que levou a sua hospitalidade ate ao ponto de nos arranjar roupa lavada para a cama e toalhas.

Qual não foi o nosso espanto quando a vimos chegar com a roupa: lençóis e toalhas de linho como já é difícil de encontrar.

– Para que é isto, D. Josefa? Não pude deixar de perguntar.

-Ora, menina, estes lençóis já não são usados há muitos anos. Mas olhe que estão limpinhos pois tive o cuidado de os lavar. Vai daí que se calhar até será a última vez que serão usados mas, como vê, ainda têm serventia.

-Sabe? Eram do meu enxoval, quando casei…

.- Meu Deus… quanto tempo já lá vai… mas fico muito contente por serem úteis. Se precisarem de alguma coisa é só terem a maçada de ir lá abaixo que arranjarei o que puder.

Já ia começar a descer os degraus e virando-se para trás disse:

– Anda por aí o Pantufas, um cão preto e branco, mas não tenham medo dele. É muito arisco e independente e tem certa dificuldade em familiarizar-se com alguém, mas não é agressivo.

Começamos a arrumar as nossas coisas e a tomar ambiente com a casa. A D. Josefa tinha tido o cuidado de deixar tudo muito limpo.

– Está um brinquinho, como ela dizia com o seu simpático ar sempre sorridente.

Com as arrumações e as conversas a noite foi caindo.

Aproveitamos para acender a lareira, mais por bucolismo do que por necessidade, ao mesmo tempo que acendíamos um candeeiro a gás que tínhamos trazido.

Resolvemos ir para fora gozar o silêncio.

A paisagem era deslumbrante.

Não se via a mais pequena luz em redor.

A luz da Lua já quase redonda dava a toda a paisagem um aspeto fantasmagórico. O alto da serra brilhava ao luar e, ao longe, pareceu-nos ver uns pequenos pontos luminosos que, no dia seguinte, a D. Josefa nos informou que deveriam ser raposas, ou até lobos, pois havia alguns por ali. – Não tenham medo porque o Pantufas dá sinal se sentir algum e eles também não vem para o povo.

Estava sentada num calhau regalando-me com o que via e com o espírito já a vogar muito longe dali quando, de repente, ao ver ao meu lado uma figura escura que me fitava com ar curioso, dei um grito que ecoou nas fragas do outeiro defronte da nossa casa.

Acalmei-me de seguida.

Tratava-se do Pantufas que me olhava intensamente e que, como tinha informado a D. Josefa, veio ver o que se passava.

Era grande e bonito. Tinha umas manchas nas patas que pareciam mesmo umas pantufas, daí o seu nome.

Ao fazer-lhe festas pousou suavemente a cabeça sobre as minhas pernas e ali esteve que tempos até que, com um salto, deitou a correr e a ladrar por ali abaixo.

– Não tenham medo, ouvimos uma voz dizer, ele faz sempre isto quando pressente ao longe uma raposa. Durmam bem e não façam caso.

– Ele volta sempre.

Dentro de algum tempo fomos para dentro e nessa noite não voltamos a ouvir o Pantufas.

Os lençóis de linho e o cobertor da serra proporcionaram-me uma noite como há já muito tempo não me acontecia.

– Bendita D. Josefa mais os seus lençóis!

O dia seguinte passou-se em passeios pedestres, na descoberta do local em que nos encontrávamos.

A dada altura o meu amigo chamou a minha atenção para um colega de viagem que tínhamos.

Olhei!

Era o Pantufas que, quando paramos para comer alguma coisa, veio novamente colocar a cabeça sobre o meu regaço.

– Bolas, disse o Joca, o bicho até parece que já te conhece há muito tempo; até parece que engraçou contigo.

– Claro! Trato-o bem, faço-lhe festinhas e dou-lhe de comer! Os cães também compreendem quem gosta deles.

O dia passou e a noite chegou!

Resolvemos assar umas bifanas nas brasas que trouxemos da lareira cá para fora e pusemo-nos a comer acompanhados do Pantufas, invariavelmente ao meu lado.

A certa altura levantou-se, aspirou o ar, deu um latido prolongado e, ladrando, desatou a correr.

Não sabíamos o que se passava. Apenas tínhamos sentido uns ramos a mexer e nos tinha parecido ver uma luz semelhante a uns olhos.

E ficamos sem saber.

A Lua, hoje já cheia, iluminava toda a serra e emprestava um tom prateado ao ribeiro que se lobrigava ao longe.

Estava uma noite tépida e apetecia-me estar ali extasiada a ouvir o silêncio da noite, apenas perturbado pelo pio duma coruja nas redondezas.

Estive tentada a passar a noite ao relento mas, pensando bem, fui para dentro pois que as noites na montanha não são quentes, nem mesmo no verão.

Mais uma noite bem passada.

No dia seguinte resolvemos fazer uma excursão mais longa e pedimos à D. Josefa que nos arranjasse qualquer coisa para comer pois que demoraríamos mais do que o habitual.

Andamos, subimos e descemos encostas e, em determinada altura resolvemos fazer uma pausa junto ao ribeiro.

-Já viste isto, disse o Joca, o jeco aqui está e mais uma vez ao teu lado. Ele engraçou mesmo contigo!

– Deixa o bicho tranquilo, ele já viu que eu também gosto dele.

– Ao meu lado não se põe ele e mesmo se lhe dou de comer põe-se logo à distância.

Depois de um bom e refrescante banho no ribeiro, regressamos a casa.

Ao cair da noite estávamos cá fora gozando aquela quietude da montanha aproveitando todos os momentos pois que, no dia seguinte ao fim da tarde, deveríamos regressar à cidade.

O Pantufas fez-nos companhia até nos retirarmos para dormir.

– O ”gajo” até parece que entende que nos vamos embora e quer aproveitar a nossa companhia, disse o Joca. Bem… a nossa como quem diz, a tua pois a mim não liga ele nada e, como vês, está sempre junto a ti.

– Ora, é porque eu também sou amiga dele. Deixa lá o cão em paz e vamos para dentro.

E a noite passou com a calma e o silêncio a que já nos habituáramos.

Logo pela manhã, o Joca resolveu ir dar uma volta e, antes de fechar a porta, disse:

– Está aqui o teu amigo. Vê se lhe arranjas alguma coisa para comer pois é o que ele quer.

O Pantufas entrou e foi direito ao meu quarto.

Eu estava distraidamente à janela vendo, lá no fundo, o Joca a fotografar os pássaros.

Estava calor, tinha-me levantado e estava completamente nua.

Ouvi os passos do Pantufas e, de repente, senti qualquer coisa que se encostava nas minhas pernas.

Virei-me e vi o Pantufas a olhar para mim com a cauda a abanar e, a certa altura, encostou o focinho no meu sexo.

Numa fração de segundo nem sei quantas coisas me passaram pela cabeça.

Desde receio que me mordesse ou me deitasse ao chão ate à vontade de lhe assestar uma boa palmada que o pusesse fora da porta, tudo veio à minha ideia.

Mas ele estava sossegado e calmo.

Parecia contente.

Fiz-lhe então umas festinhas na cabeça e, nesse momento, encostou-se mais e, lentamente, começou a lamber-me. Entre querer repeli-lo e o prazer que estava a sentir, não sabia o que fazer.

Continuei a afaga-lo até ao fim…

Ouvindo barulho, regressei à realidade; fui lavar-me e vestir-me. Quando entrei na sala estava o Joca a chegar com a D. Josefa que tinha resolvido trazer-nos o pequeno- almoço.

Ao ver o cão, saiu-se a dizer:

– Eu bem lhe disse que ele quando lhe dá na cabeça até consegue ser muito meiguinho.

– É um amor, disse eu calmamente ao mesmo tempo que, sorrindo, lhe afagava a cabeça.

Nesse dia viemos embora e nunca mais lá voltei mas, no entanto, esta aventura vem-me à memória de vez em quando e, apesar de tudo e correndo o risco de me chamarem anormal, essa lembrança inunda-me duma grande ternura.

Muito tempo depois, alguém que conheci e que tinha andado por aquelas bandas do Gerês, contou-me ter ouvido a história de um cão que não se familiarizava facilmente com algum desconhecido e até, por vezes, se tornava ameaçador.

Aconteceu, no entanto, contava um dos derradeiros habitantes daquele povo, que um dia apareceu por lá uma rapariga nova e o cão, sem que ninguém entendesse como ou porquê, se encostou de imediato a ela e quando esta, sentada, lhe fez festas, o cão pousou gentilmente a cabeça no seu regaço. Nos dias em que a pequena esteve ali o cão não largava a porta e, sempre que podia, ia lá para dentro fazer-lhe companhia.

Ela dava-lhe de comer, acariciava-o e ele correspondia-lhe com uma meiguice que ninguém teria pensado.

Quando ela e o amigo saíam para os seus passeios é certo e sabido que o bicho os acompanhava fielmente.

E ai de quem se metesse com a rapariga…

Acabando-se as férias ela retornou à cidade.

Mas, para espanto de todos, no dia seguinte lá estava o bicho, logo pela manhã, deitado à porta da casa em que ela esteve instalada.

Esta cena repetiu-se durante dias…semanas …

O pobre animal não arredava dali a não ser quando a D. Josefa, sua dona, o chamava para comer. Vinha, mas não comia e esgueirava-se prontamente para o seu poiso habitual.

Por vezes, quando chegava um carro, o que era raro, levantava-se e arrebitava as orelhas olhando ansiosamente.

Como não aparecia ninguém que lhe interessasse, voltava a deitar-se.

Ia definhando de dia para dia.

Nunca uma coisa tal tinha sido vista.

– Jesus, dizia a D. Josefa, até parece que se apaixonou pela pequena. Cruzes, canhoto, abrenúncio!

E benzia-se febrilmente.

O tempo foi passando, os dias cada vez mais curtos e o frio começando a entorpecer tudo.

Era já o inverno.

… E o Pantufas, indiferente ao mau tempo e ao frio, cada vez mais debilitado, ali continuava estoicamente, triste e calado, esperando…esperando…esperando……

Uma manhã de inverno quando o sincelo brilhava por todo o lado com a reverberação provocada pela luz do Sol, alguém que por ali passava encontrou o Pantufas esticado e hirto, iluminado pelo Sol e encostado à porta.

Estava morto!

Morto de amor?

Imagina como fiquei e como me senti ao ouvir esta história.

Também eu gostei muito do animal!

Foi a única vez na minha vida que me aconteceu uma coisa destas e, ainda hoje, pergunto a mim mesmo porquê… e não encontro resposta.

No envelope que aqui junto tens instruções quanto ao que deverás fazer com o que encontrares e, como te prometi, ficaste a saber mais da vida da “Puta Velha” do que todas as pessoas que por mim passaram ou se cruzaram ao longo duma vida.

Peço-te que sejas indulgente no que respeita à minha pessoa e que possas compreender a vida que levei e que agora chega ao fim e cujo julgamento depende apenas da tua compreensão.

Conhecemo-nos há pouco mais de um ano, falamos muitas vezes e nunca houve nada entre nós mas uma pergunta ficará para sempre sem resposta, nem tua nem minha.

Porque, e porquê, confiámos um no outro?

Pedrouços, 6 de Março de 2015