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BREVES APONTAMENTOS SOBRE O MANUELINO

Escrito por em Abril 12, 2022

BREVES APONTAMENTOS SOBRE O MANUELINO

   Por Fernando Ziegler Raimundo

 

 

 

Arquitetura caótica 

Construída em clausura 

Ditames de reis loucos 

Messiânicos e ambiciosos 

Que ousaram abrir o Sul  

Ao Ocidente 

Caravelas manuelinas 

Velas rotas, conventuais 

Cordas ressequidas 

Corroídas pela emoção 

E pelo sonho 

Sono profundo como o mar 

Rasgado por quilhas  

De um Infante Templário 

Catedrais quinhentistas 

Com janelas ventiladas 

Pelo sol e pela luz 

Rosas cristalizadas 

Em vitrais 

Naufrágios de famílias sofridas 

Pelo fado embriagado 

Partidas de naus sem retorno  

E sem regresso 

Naves de igrejas  

Sem transepto 

Colunas torsas  

Do firmamento suspensas 

Presságio de naves futuras 

Que hão de um dia sulcar 

Planos intergalácticos 

Setúbal 12 Abril 2022 – Surgiu este poema no rescaldo de uma visita que fiz com uns amigos ao recentemente recuperado convento e igreja de Jesus, em Setúbal, na qual foi possível usufruir da magnífica intervenção de restauro neles efetuada. Esta operação de requalificação envolveu também o espaço público, a sul – o Largo de Jesus – onde pontua o cruzeiro, localizado num dos três talhões relvados orientados para o portal da igreja, cujo enquadramento muito valoriza a leitura do monumento.

Esta visita trouxe-me à memória a gesta dos Descobrimentos, alicerçada num ousado programa político e expansionista que, também a pretexto de justificações religiosas – ‘a dilatação da Fé e do Império’, como escreveu Camões – desde então marcou profundamente a nossa História, extravasando fronteiras e expressando-se a todos os níveis da sociedade, da economia à

cultura e à arte, revelando-se na literatura – onde pontuam “Os Lusíadas” – na arquitetura – onde se destacam o Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, o Mosteiro das Batalha e o Convento de Cristo, em Tomar – e na pintura, cuja obra mais significativa terá sido a dos “Painéis de S. Vicente de Fora”, atribuídos a Nuno Gonçalves.

E segundo o filósofo António Telmo (1927-2010) “Os Lusíadas constituem a cifra poética para aquilo de que os Jerónimos são a cifra arquitetónica”, ou, dizendo de outra maneira: ‘Os Jerónimos são Os Lusíadas em pedra’.

É, pois, sobre alguns aspetos da arquitetura dita “manuelina” em Portugal que versa o presente escrito, sob o pretexto de se considerar este conjunto edificado – a igreja e o convento de Jesus – como a sua primeira expressão artística, havendo até quem defenda que o autor da obra, mestre Diogo Boitaca, a terá utilizado como modelo para a construção da igreja de Nossa Senhora dos Reis Magos ou Santa Maria de Belém, em Lisboa, mais conhecido por Mosteiro dos Jerónimos, aquele que é considerado o monumento central do final da Idade Média no nosso país.

Tal como na maioria dos templos antigos, a implantação longitudinal desta igreja estabelece-se segundo um eixo nascente-poente, com o altar e a cabeceira voltadas para oriente e o seu monumental portal de entrada alinhado segundo um eixo norte-sul que atravessa o cruzeiro, bem podendo esta última particularidade sugerir um desígnio e uma vocação atlântica na intencionalidade de quem encomendou a obra e do arquiteto que a concebeu.

Foi justamente Justa Rodrigues Pereira a fundadora do convento de Jesus em Setúbal no ano de 1490. Seguramente de linhagem aristocrática, já que pertencia à casa de D. Fernando, Mestre da Ordem de Santiago, irmão do rei D. Afonso V e pai da rainha D.ª Leonor (esposa do rei D. João II) e também do futuro rei D. Manuel, a fundadora empenhou-se na construção do convento que permitiria assistir às necessidades das famílias que perdiam os pais na epopeia dos descobrimentos, porquanto Setúbal se havia tornado num dos centros de construção de embarcações para aquele desígnio.

O convento destinava-se às monjas Observantes, Obediência variante das Clarissas que sob os auspícios de Santa Coleta pretendiam retomar o ideal de despojamento e de ascese franciscana. Levando uma vida de clausura, uma vez entradas no convento, já não saíam. Para concretizar este propósito contou Justa com o apoio de D. João II, da rainha D.ª Leonor e do futuro rei D. Manuel, de quem fora ama.

Quer a Igreja de Jesus quer o Mosteiro dos Jerónimos possuem uma fachada lateral proeminente, habitualmente secundária, voltada a sul, na direção de África, sendo que em Setúbal ressalta a ausência de simetria, apresentando-se a cabeceira sobrelevada em relação à nave e beneficiando o portal de generosas dimensões.

Se a disposição assimétrica dos elementos arquitetónicos que modelam esta fachada terão resultado de sucessivas interferências programáticas por parte dos diferentes protagonistas e decisores políticos da época – os reis D. João II, D. Manuel e a rainha D.ª Leonor – também convém referir que para a configuração estética da alma portuguesa contribuíram, sobretudo, uma tradição Criptojudaica, propícia à assimetria e ao orgânico, um legado Celta, recuperado pelo cristianismo e ligado à tradição do Graal e um Franciscanismo Joaquimita (… com raízes no abade cisterciense italiano Joaquim de Flora, séc. XII). Sabemos hoje que os três credos abraâmicos – judaico, cristão e islâmico – coexistiram de forma pacífica até ao reinado de D. Manuel, embora o cristão prevalecesse sobre os restantes, por se tratar da religião da reconquista e do Estado. O povo português soube sintetizar o legado comum a esses três credos – a presença de Deus (Shekinah), traduzida pelo culto do Espírito Santo – acabando o manuelino por refletir, a nível da sua expressão arquitetónica, o pensamento português e a sua alma, caracterizada pelo sentimento de saudade, tão caro a Teixeira de Pascoaes.

Para uma caraterização estrutural, espacial e simbólica da arquitetura manuelina proponho-me fazer uma série de analogias entre determinados aspetos conceptuais, semânticos e formais que julgo serem úteis, ou pelo menos curiosos, para a sua compreensão.

Quando se observa a fachada da igreja a partir do cruzeiro localizado a sul sobressaem algumas semelhanças com a silhueta de uma embarcação quinhentista, seja ela uma barca, um barinel (figura de baixo), uma caravela ou uma nau.

Convento de Jesus – Setúbal

Aliás, há até quem encontre analogias entre os termos Cavalaria e Caravela – quase um anagrama – fruto certamente de uma fértil imaginação, mas que do ponto de vista semântico poderá fazer algum sentido, já que a palavra “cavalo” (…/ Cavalaria) apresenta semelhanças com “cabala” (“qabbalah”), escola de pensamento judaica de conteúdo esotérico.

Nau Caravela

Presumindo nós que os ideais da Cavalaria espiritual, como a dos Templários, terão influenciado os valores pelos quais o Ocidente se procurava reger – a verdade, a beleza e a bondade, as virtudes teologais e as virtudes cardeais,

entre outras – quase se poderá admitir que esses desígnios serviram de pretexto ideológico para justificar as demandas imperiais e expansionistas ligadas aos Descobrimentos, passando as caravelas a substituir os cavalos e os templos a ser as naus. A palavra “nau” (barco) possui, aliás, o mesmo étimo de “nave” (longo e estreito salão central de uma igreja), vindo do latim, navis.

Ponderemos nas correspondentes analogias cénicas entre o padre, como capitão da nave da igreja, a partir do altar, e o sacerdote, como comandante da nau, referenciando-se um em relação ao Cristo e o outro à estrela polar, ambos viajando rumo ao desconhecido, seja ele as regiões desconhecidas da Mente ou o misterioso mundo para além do Cabo Bojador, o da Boa Esperança! Aquele mundo situado a Oriente, donde vem a Luz, antecedida pelo cantar do galo antes de amanhecer!

Embora considerada por alguns uma variante do gótico tardio, ou flamejante, inspirando-se nas igrejas-salão alemãs (Hallenkirchen), segundo outros, existem aspetos marcantes da arquitetura ´manuelina´ que lhe conferem uma originalidade e até uma identidade próprias, compagináveis com os ambientes únicos decorrentes da configuração dos elementos estruturais das suas naves, do controlo da luz, da hierarquização dos seus espaços e de uma ornamentação simbólica e decorativa apenas encontrada em Portugal ou noutros continentes por ele influenciados. Trata-se, portanto, de uma expressão artística genuinamente portuguesa.

Talvez por isso António Quadros (filósofo, 1923-1993) tenha designado o ‘manuelino’ como barroco atlântico (Introdução a uma Estética Existencial, Portugália Editora, 1954).

Uma das características diferenciadoras da estrutura física das igrejas do Manuelino relativamente às do Gótico reside na dimensão espacial decorrente do sistema estrutural constituído pela articulação dos pilares com as abóbadas dos tetos. Enquanto na arquitetura gótica existem vários níveis de tetos com abóbadas altas (geralmente 3), correspondendo às diversas naves dos edifícios, já na ‘manuelina’ o espaço encontra-se unificado pela igual altura do teto das mesmas, suportadas por travamentos em pórticos apoiados por enormes capitéis octogonais que coroam os pilares.

O interior da igreja do Convento de Jesus, em Setúbal, estando reduzido a uma única nave, não possui um transepto, a parte de um edifício de uma ou mais naves que atravessa perpendicularmente o seu corpo principal perto do coro e lhe confere a sua planta em forma de cruz.

Transepto

O material escolhido para a construção do Convento de Jesus foi, predominantemente, a brecha da Arrábida (popularmente conhecida por mármore da Arrábida, rocha detrítica multicolor, de origem sedimentar) também utilizada no cruzeiro. Terá sido esta pedra macia, mais facilmente moldável, que permitiu construir as colunas torsas que sustentam as abóbadas, sugerindo cordas de uma embarcação, suspensas do firmamento. Os navegadores portugueses (cavaleiros das naus) elegeram a dinâmica noção de Firmamento – algo mutável nos céus preenchidos pelas estrelas referenciadoras – para alicerçar o elemento implícito da nossa História.

Interior do Convento de Jesus – Setúbal

Colunas Torsas no Convento de Jesus – Setúbal

 

Estas cordas entrelaçadas apresentam semelhanças com o chamado “cordão prateado”, dos místicos, que alegam ser esse o elo de ligação entre o corpo

físico e o ‘duplo’ que sairá do corpo (a terra) para os outros planos (continentes, …Índias) durante o sono (viagem) e definitivamente após a morte, com a sua rutura definitiva.

Uma das figuras geométricas presente neste monumento e aplicada noutros edifícios do Manuelino é o octógono, aqui reproduzida:

– Na base do cruzeiro, constituída por quatro ordens de degraus recortados em forma de pétalas de rosa circulares, sobre a qual assenta uma coluna com base e capitel oitavados;

– Na planta octogonal do volume da capela-mor, a nascente, que se evidencia pela sua altura, relativamente ao corpo da única nave da igreja;

– No claustro do convento, de forma quadrangular, cujos corredores que o envolvem estão separados do pátio central por oito arcadas ogivais em cada lado, subdivididas entre si por grupos de quatro, separados por arcos de volta perfeita de menor dimensão e que marcam a direção dos quatro pontos cardeais.

O octógono, tal como o nº 8, simboliza a alma, colocada num patamar intermédio entre o quadrado e o nº 4 – que representa o corpo e a matéria constituída pelos quatro elementos – e o círculo que representa o espírito.

Claustro do Convento de Jesus – Setúbal

Sobre o Manuelino muito mais fica por dizer, sendo que hoje se navega sobretudo através do elemento ar, utilizando-se aeronaves. A matéria de que são feitas já não é a madeira, nem a brecha da Arrábida, palavra de origem árabe que significa “local de oração”. O Sado, único rio no território continental que contraria o sentido em que os navegadores rumavam, de norte para sul, significa, em árabe, “feliz”. Talvez fosse esse o sentimento no regresso, marcado pela saudade que viria a ser cantada através do fado.


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